Meu Vampiro Secreto
— Meu Deus que calor! — Disse Sabrina balançando a camiseta velha em uma tentativa de ventilar o corpo. A rua estava movimentada apesar da hora, mas ela achava melhor assim, Goiânia estava cada vez mais perigosa, e uma menina andando sozinha à noite era um convite para coisas perigosas.
As mãos suadas se atrapalhavam na
tela do celular enquanto ela espiava suas redes sociais.
— Há, eu sabia, ele sempre a traiu! — Comentou vendo a notícia de um
casal de famosos que se separara recentemente.
Conforme se afastava do escritório
onde trabalhava o movimento da avenida diminuía. Sua barriga roncava de fome,
então uma busca pela melhor lanchonete do caminho começou.
— Que pena, eu estava afim de uma mini pizza hoje. — Lamentou
Sabrina enquanto passava pelo ponto onde um rapaz montava seu “food truck” de
mini pizzas às sextas feiras. — Eu odeio segundas, nem para pizzas boas elas
servem.
A escolhida foi uma lanchonete que
servia sanduiches, e medindo por sua fome, Sabrina pediria um “X-Tudo”.
Um vento frio passou por seu corpo,
entrando pela fina trama da camiseta e fazendo com que Sabrina se arrepiasse
toda.
— Nossa, quem abriu a geladeira?
Então alguém riu às suas costas.
Alguém estava seguindo ela. O medo a tomou e ela apertou o passo para tentar
fugir do seu perseguidor. Mas ele estava muito perto, apenas esticou uma mão
enluvada e a segurou pelo braço.
Ele a puxou fazendo com que ela o
encarasse. Era um rapaz de aparência boa, ele tinha o cabelo bem cortado e os
dentes retos e brancos demais. Todos menos as presas. Estas eram compridas e
pontiagudas. Quase caricatas, lembrando vampiros de filmes e séries de baixo
orçamento.
Mas por uma ironia do destino,
aquele era realmente um vampiro, e ele confessou sua condição logo antes de atacá-la.
Disse olhando bem no fundo dos seus olhos o que ele era, e o que faria. Sabrina
estava paralisada, parecia que o olhar do rapaz a petrificara.
— Você não vai conseguir se mexer
até eu te liberar, então pode fazer o tanto de força que quiser. Quanto mais
melhor. — Disse ele com um sorriso no rosto.
Ele aproximou sua boca com presas
pontiagudas do pescoço dela e tocou de leve os lábios em sua pele. O toque era
muito frio, tão frio que parecia queimar. A reação do toque nela foi muito mais
forte do que apenas a parte física, ele parecia sugar toda a força de Sabrina
só com seus lábios. Mas foi quando as presas furaram sua pele que as coisas
mudaram. Um turbilhão de pensamentos
voou dentro de sua mente. Ela quase se afogou com a quantidade de informação.
Sem que seu agressor percebesse,
esse choque fez com que Sabrina retomasse controle de seu corpo. Ela o chutou
com força entre as pernas e o empurrou.
O rapaz caiu no chão, com manchas de
sangue no queixo e uma expressão de dor e surpresa no rosto, enquanto cobria
suas partes íntimas um pouco tarde demais.
— Sua... como?! — Balbuciou ele com
raiva.
Sabrina não perdeu tempo com ele.
Estava perto de casa, então correu o mais rápido que pôde, até finalmente
entrar em seu apartamento e trancar a porta.
Os furos não eram grandes, mas
faziam finos caminhos de sangue que escorriam por seu pescoço. O “beijo” do
agressor tinha deixado ela exausta. Ela se esforçou para entrar no chuveiro,
mas precisava, seu corpo parecia estar todo contaminado com o toque do rapaz.
Agora com pequenos curativos no
pescoço, um grande copo de leite quente com achocolatado e sua coberta favorita
ela tremia na cama. O sono demorou a vir, e todas as vezes que fechava os olhos
por muito tempo a mão enluvada do rapaz aparecia e a agarrava, trazendo-a de volta
para a noite barulhenta.
O lençol estava empapado de suor
quando Sabrina finalmente caiu no sono.
°
Eu estava andando para casa, como
sempre faço todas as noites após o trabalho. Não sei explicar como, mas eu
sabia que era mais do que um sonho, era muito realista. Como uma memória que
fora esquecida.
Minha barriga roncou tão alto que eu
pensei que os outros tivessem ouvido.
— Vamos experimentar uma mini pizza
hoje, ‘patroa’? — Ofereceu o rapaz do ‘Food Truck’.
— Por que não? — Eu estava com fome,
e sempre quis experimentar as pizzas dele.
O rapaz gordinho trouxe a pizza até
minha mesa quando esta ficou pronta.
— Aqui está.
— Brigada.
— Vai querer tomar alguma coisa?
— Não, só a pizza por hoje — Eu não
tinha dinheiro para mais do que a pizza, mas ele pareceu perceber que esse era
o motivo.
— Toma aqui, é por conta da casa —
Disse ele retornando com uma lata de refrigerante.
O rapaz era simpático, e a pizza
estava deliciosa. As mesas já estavam vazias, eu não tinha percebido que era a
única lá. Ele parecia esperar uma nota sobre sua culinária.
— Esfá muifo foa — Meu Deus, eu falei com a boca cheia de pizza.
Ele foi educado, apenas sorriu e
agradeceu o elogio.
— Como você se chama? — Perguntei
depois de um tempo para engolir a comida.
— Bonifácio, e o seu?
“Bonifácio”. Eu não disfarcei muito
bem minha surpresa.
— Sabrina, é um prazer.
Ele parecia querer conversar, mas
mantinha distância. Então eu o convidei para se sentar comigo.
— Você tem certeza?
— Sim, eu não gosto muito de comer
sozinha.
O rapaz se sentou de frente para mim
calado.
— Você é daqui, Bonifácio?
— Não, — riu ele — eu sou de bem
longe. E você?
— Também não, mas não sou de tão
longe — Que piada ruim. Mas ele pareceu gostar.
Nós conversamos ali por muito tempo.
Ele se soltou, gostava de falar de política e tinha um ótimo senso de humor –
ele ria bastante das minhas piadas, e seus comentários eram inteligentes – mas
seu grande sonho era se tornar chefe de cozinha.
O movimento na rua tinha caído
bastante quando resolvemos olhar para os lados. Já era tarde.
— Eu preciso ir. Foi muito bom te
conhecer — disse, sorrindo enquanto me levantava e pegava minhas coisas.
— Foi muito bom te conhecer também —
Ele parecia triste com a despedida. Como se nunca mais fossemos nos ver.
Ele esticou a mão hesitante para se
despedir. Então quando peguei sua mão ele disse com um olhar triste: — Me
desculpe, eu estou com muita fome, eu preciso.
°
O sonho se desfez e Sabrina acordou.
Já era de manhã e os acontecimentos da noite anterior voltaram para assombrá-la.
Ela tivera algum sonho bom, mas não conseguia se lembrar sobre o que foi.
Então, reunindo coragem, enquanto
era incentivada pelas amigas no grupo de mensagens, ela se levantou e começou
sua rotina matinal de preparação para encarar a tediosa rotina no trabalho.
— Você não veio sozinho hoje, ein? —
Brincou ela olhando para o sol, que parecia ter trazido outros dois irmãos tão
quentes quanto ele, enquanto saia de seu prédio.
Todos os homens que via na rua
aparentavam persegui-la, um deles até sorriu para ela, e ela podia jurar que
ele tinha grandes presas brancas e pontiagudas.
No escritório não fora diferente.
Seu chefe, que ela sempre achou tratar os outros muito friamente, agora parecia
ter tido sua temperatura corporal reduzida também. Um aperto de mão quando ela
chegou ao escritório e o resto do dia a fez suar como louca. Cada vez que ele
falava algo, ou pedia certo relatório, os pelos de sua nuca se eriçavam.
Em dias ruins, ou muito cansativos,
ela gostava de se dar “presentes”, como: lanches mais caros, ou a volta do
escritório de uber, algo simples, mas que a faziam se sentir especial. Nesta
terça-feira, porém, a volta sozinha no carro com o motorista, e o entregador do
jantar que pedira por aplicativo, a assustaram tanto que quase estragaram a
alegria dos “presentes”.
°
Era sexta-feira. Eu sabia porque
estava finalizando o relatório da semana. Meu Deus meu cabelo estava feio,
parece que eu não o lavei a semana inteira.
No elevador do escritório minha
barriga roncou tão alto que o ascensorista fez uma cara de dó para mim, como se
eu não comesse a dias. Um ponto positivo, na última sexta eu comi uma deliciosa
mini pizza, com sorte o rapaz estará lá hoje novamente.
— Boa noite! — Nossa como o cheiro é
bom! — Eu vou querer uma, por favor.
Ele não parecia se lembrar de mim,
se bem que, como era o nome dele mesmo? Era algo engraçado... Patrício?
— Oi, Sabrina — disse ele com um
sorriso, enquanto colocava minha mini pizza na mesa.
— Oi, tudo bem?
Ele pareceu muito contente com minha
resposta, parecia esperar que eu não gostasse dele.
— É Bonifácio, não? O seu nome. — Eu
me lembrei, bom, na verdade estava escrito em sua Kombi, mas acho que eu me
lembrei antes de ler.
— Isso mesmo, como o grande político
que auxiliou na Independência do Brasil. — Era estranho, mas ele parecia se
orgulhar demais deste seu outro Bonifácio.
— Me desculpe, quem?
— Ah, ninguém. — Ele respondeu sem
graça.
Quando estava por acabar minha pizza
ele se aproximou novamente, como quem queria puxar conversa, então eu disse: —
Por que não me conta mais sobre esse tal de
Bonifácio, o político da Independência?
Seus olhos brilharam de felicidade e
o que parecia orgulho, ele se aproximou rapidamente da mesa, com mais agilidade
do que eu esperaria de alguém “rechonchudo”, e como se eu tivesse tirado a
rolha de uma banheira, ele começou a falar sem parar: — Bom, para começar, na
época eles eram chamados de “estadistas”, ele era também poeta e um grande
estudioso das artes naturais...
A aula durou um bom tempo, mas eu
não me cansei, Bonifácio falava de seu xará
com tanta empolgação que o tempo não parecia fazer diferença. Quando nos demos
conta, a rua estava vazia e apenas nós dois restávamos ali.
— Aquele último dia eu me senti mal
por não a acompanhar até sua casa, senhorita. Gostaria que hoje pudesse me
retratar.
— Você ficou preso século XIX? — Meu
Deus que piada ruim, o garoto gostava de uma linguagem rebuscada, e daí? Mas
ele pareceu não se importar, na verdade riu por um bom tempo.
— Tudo bem, eu aceito. — Eu disse,
aceitando a carona dele.
— É esse daqui — apontei meu prédio.
— Não é muito novo, nem muito grande, mas é tranquilo.
— Ah sim, é muito bonito. — Ele estava
sendo simpático, meu prédio é feio
Então, quando fui cumprimentá-lo com
um aperto de mãos, Bonifácio se recuou e quase caiu para fora da janela de sua
Kombi.
— Me desculpa, eu não queria te
assustar.
— Ah, sim, não, sim... Eu, não. Hoje
não.
— Hoje não?
— Não, hoje não. Ainda não, nós
temos pouca intimidade, não é? Não há necessidade para contato físico, só
estava fazendo um favor — se explicou ele.
Era estranho, eu parecia me lembrar
de pegar em sua mão na semana passada. Mas eu peguei? O que foi que ele disse
logo antes? Que memória ruim a minha. Bom, nada errado com um rapaz que
respeita uma moça, é estranho nos dias atuais, mas eu até que gosto do ar dele
de “antigo”.
— Tudo bem, sem contato físico
então. Mas muito obrigado por me trazer, e obrigado pela mini pizza, estava
realmente boa — Ah não, eu acariciei minha barriga. Por que eu fiz isso? E ele
olhou diretamente para ele. Eu preciso perder alguns quilinhos.
— Sem problema. Eu espero te
encontrar na próxima sexta! — Gritou ele de dentro do carro quando eu entrava
no prédio, eu sorri concordando.
°
O alarme soou no quarto e Sabrina acordou agitada. “Agora
estou sonhando com o rapaz da pizza, era só o que me faltava. ” Pensou ela já
se esquecendo dos detalhes do sonho, o nome dele fugindo da memória e dando
espaço a pensamentos mais apavorantes: quarta-feira era dia de reuniões.
O pavor de todo e qualquer homem
diminuíra um pouco, ela não saberia dizer se porque tinha muito trabalho
acumulado, ou se porque sonhara com um que era diferente de todos os outros.
Agora o sonho parecia um filme que ela assistira quando tinha apenas doze anos,
todos os detalhes haviam sumido, mas sentia um calor no peito quando pensava
nele. Aquele rapaz cujo nome ela sequer se lembrava.
O caos no escritório estava
generalizado, alguns corriam de um lado para o outro carregando pilhas de
papeis e documentos, enquanto outros digitavam tão avidamente que os teclados
provavelmente não durariam outra semana.
— O que há com todos vocês? —
Perguntou Sabrina interceptando Elisa, uma jovem estagiária que passava
correndo com o que pareciam ser décadas de relatórios nos braços.
— Hoje na reunião, — ela parou para
respirar — tem um diretor — outra pausa — direto de Portugal. — Concluiu ela, e
ouvindo alguém chamar seu nome, correu sem olhar para Sabrina novamente.
— Um diretor? Aqui? Nós estamos
encrencados. — Sabrina anunciou para si compreendendo o motivo de toda a
comoção.
Metade do pessoal estava reunida na
sala de reuniões quando seu chefe entrou e anunciou o que todos sabiam: “Hoje
temos uma visita ilustre. O Senhor Cardoso Rocha, Diretor de Negociações,
Cobertura e Fechamento de Assuntos Diversos; estará presente em nossa reunião.
Ele veio diretamente de Lisboa, e eu espero que não me envergonhem na frente
dele. ” Então ele abriu a porta e convidou o homem para entrar.
Os dedos dos pés de Sabrina
pareceram congelar no sapato apertado, ela queria correr. Era ele. O homem que
a atacara duas noites atrás. Estava mais corado e menos pálido, e quando
sorriu, seus dentes pareciam de um humano normal. Mas os olhos sem brilho ainda
eram os mesmos. O terno impecável, a luva de couro preta e o cabelo lambido
também.
Quando ele falou, a temperatura da
sala caiu. “Meu Deus, ele é meu chefe. O que eu vou fazer agora? E se ele me
reconhecer? E quiser se vingar pelo meu chute? Eu deveria denunciá-lo! Que
besteira, não tenho provas contra o homem, e ele provavelmente tem imunidade
aqui no Brasil. ”
A reunião durou uma hora inteira.
Uma hora com todos os sessenta minutos, todos os três mil e seiscentos segundos
de medo. Medo que ele olhasse para ela e a reconhecesse. Porém, ele não o fez.
E se a reconheceu, não demonstrou.
Quando a reunião acabou, Sabrina
saiu correndo da sala direto para o banheiro. Ficou lá por um tempo se recompondo
e retornou. Seu chefe estava sozinho agora, então ela aproveitou a oportunidade
e explicou que precisava ir embora, não estava se sentindo bem. Felizmente, sua
expressão, o rosto suado e a boca sem cor ajudaram a convencê-lo.
Sabrina pegou suas coisas e foi
embora correndo, torcendo para não encontrar o Diretor no caminho até em casa.
“O que ele quer aqui? Por que veio até mim? ” Perguntas corriam de um lado até
o outro dentro de seu cérebro. Mas a única resposta que conseguiu achar fora:
“Foi uma coincidência. Ele não se lembra de mim porque eu era apenas uma
qualquer. Naquela noite na rua, e hoje na sala. Ele faria o mesmo com qualquer
outra pessoa. ”
Chegando em casa ela estava tão
enjoada de pavor que passou boa parte da tarde correndo da sala até o banheiro.
Até que finalmente cedeu e adormeceu no sofá mesmo.
°
O cheiro de pizza me atraiu para o
“food truck” sem que eu percebesse. Era sexta-feira novamente. A semana corrida
havia lavado a memória de meu novo amigo, mas agora, vendo sua Kombi, sentindo
o cheiro de queijo derretido e massa assando, eu me lembrei. Como pudera
esquecer? Em tão pouco tempo e já éramos próximos como amigos de antigas datas.
O sorriso trocado, os olhares
cruzados, estávamos ansiosos para o movimento do “food truck” reduzir para
podermos nos sentar juntos.
Quando finalmente todos se foram,
Bonifácio se aproximou e eu só então percebi como estava magro. Parecia que não
comia a dias. Um Bonifácio completamente diferente do que vi na semana
anterior.
Ele se sentou e começou, com um tom
consideravelmente sério, explicando que tinha uma condição física especial, por
isso evitava se aproximar demais das pessoas. Mas eu não me importei, já havia
me afeiçoado pelo rapaz sonhador.
Ele então continuou, disse que não
era algo simples, e que entenderia caso eu quisesse cortar relações com ele,
mas que estava pronto para me contar a verdade. E como contou...
Ele confessou ser um vampiro, um ser
que vive da energia das outras pessoas. Suga para se manter forte. Mas que
diferente de outros, ele o faz apenas pelo toque. Então segurando minhas mãos,
com dedos que pareciam pedaços de gelo de tão frios, ele demonstrou sua
habilidade conforme meu corpo amolecia.
O toque não durou mais do que alguns
segundos, e mesmo assim, o mundo girou ao meu redor. Quando consegui me focar,
ele agora não parecia mais adoentado, estava corado e parecia menos magro
também.
— E com essa quantidade eu consigo
me manter por alguns dias, talvez até mais do que uma semana. — Contou ele.
— Você...
— Sim, fiz isso com você, sem sua
permissão, na noite em que nos encontramos. Mas também induzi que não se
lembrasse, para que o terror não a assolasse. Me garanti disso.
— Mas eu me lembrei.
— Sim. Você se lembrou. — Concordou
ele com tristeza na voz.
— E isso é ruim?
— Essa vida não é segura, várias
vezes vi pessoas boas ao meu redor se perderem.
— Nenhuma vida é segura. Quando
saímos de casa todas as manhas corremos riscos. E mesmo sem sair, acidentes
domésticos ainda são uma grande causa de mortes em nossa sociedade.
— É, acho que você está certa.
— E.... e as presas? Vocês têm
presas pontiagudas? — Perguntei curiosa.
— Bom, depende, — respondeu ele com
um sorriso. Suas presas agora cresciam lentamente. — É como um gato, quando
este coloca as garras para fora quando caça. É um mecanismo excelente, elas
sempre cortam os lábios inferiores se deixarmos assim. — Apontou ele quando as
presas alongadas marcaram os lábios onde apertavam a carne.
Sua expressão ajudou, ele não era um
vampiro terrível de um filme americano, era um rapaz com sonhos e expectativas,
e que, como ele dissera, tinha uma condição médica especial.
— Bom, para todos os efeitos, eu não
me importo de você ser quem você é. Eu até meio que gosto. — Ah, não. Falei
mais do que deveria. Será que ele percebeu?
— Ah, eu, é. Eu também gosto. Não de
ser diferente. De você. — Disparou ele nervosamente. — Quero dizer, não que eu
não goste de ser quem sou, eu só concordei com você dizendo que gostava de mim,
e eu também gosto. De você, isso é. E de mim. Ah, Drácula, me ajude. — Concluiu
Bonifácio.
— Que bom que você gosta. — Meu
rosto está em chamas, o que eu faço agora?
— Existem mais como você? —
Perguntei finalmente.
— Ah, sim. Muitos mais. Uma
sociedade inteira. Mas não faço mais parte dela. Meu pai fez questão de me
expulsar quando não quis seguir seu ‘plano de carreira ideal para um jovem
promissor’.
Bonifácio então me contou que seu
pai era, e continuava sendo, José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da
Independência. E seu objetivo para o filho era que seguisse na política também.
Mas que o gosto pela cozinha o captara desde cedo.
Conversamos por várias e várias
horas, e quando decidi ir para casa, fiz algo que nunca havia cogitado,
convidei um rapaz para entrar em meu apartamento.
Bonifácio e eu subimos e continuamos
nossa conversa lá. As horas se passaram e, para minha surpresa e dele, o
convidei para que dormisse lá. Com certa resistência, não dormi sozinha naquela
noite.
°
A noite no sofá cobrou seu preço logo
pela manhã. Sabrina andava dura até o trabalho. Dura e apavorada. Não tinha
contado para ninguém sobre o chefe vampiro, e agora, teria que encarar o
monótono trabalho sabendo que era empregada de um ser que abusava das pessoas.
“Mas nem todos os vampiros são maus,
certo? ” Pensou ela consigo mesma.
— Como que podem não ser? Eles sugam
sangue. É claro que são maus. — Disse ela em voz alta. Mas no fundo de sua
mente, ela sentia não eram. Nem todos eram assim. Inclusive, deveriam existir
alguns que não precisassem de sangue. Ela queria acreditar nisso, mas o medo
ainda era forte demais.
No trabalho, poucos deram
importância para o fato de um Diretor ter tido lá no dia anterior. A letargia
costumeira já abraçara a todos, e até mesmo seu chefe parecia mais tranquilo
agora que a vistoria havia acabado.
O Diretor voltara para Portugal, e
todos voltaram para suas rotinas sem graça. Mas havia algo diferente. Algo
escondido, velado. Ela queria se lembrar, mas como quando se bebe demais na
noite anterior, e na manhã seguinte, mesmo vendo as fotos, não consegue se
lembrar do que fez, Sabrina não conseguia lembrar exatamente o que era.
As quintas-feiras eram sempre as
piores para ela. Se arrastavam bloqueando o final de semana. E quando
finalmente acabavam, traziam uma tonelada de relatórios semanais para entregar
no dia seguinte.
Mas as sextas, apesar dos
relatórios, não eram tão ruins, ponderou Sabrina. Elas também têm coisas boas:
como a expectativa do efêmero, mas potente descanso por vir. O sossego, e algo
mais, algo que ela não conseguia se lembrar.
O dilema entre odiar e temer
vampiros ou se afeiçoar e gostar deles, sem saber porque, a tomou por conta,
encerrando seu dia pela metade tornando todo o resto cinza e sem importância.
Até sua deliciosa cama, de quem ela sempre sentia mais saudade, pareceu dura
quando se deitou pela noite.
°
—
Finalmente, adeus semana, adeus pessoas enjoadas. Olá final de semana, olá
Netflix. — Eu não aguentaria mais nem um segundo no escritório. Corri para o
elevador quando ‘cliquei’ o botão enviar no e-mail que redigi para meu chefe.
A
rua, como sempre, estava apinhada de pessoas apressadas, prontas para curtir
uma boa noitada. A noitada que eu tinha em mente era bem diferente, pediria
alguma comida, talvez até tailandesa, e assistiria algum filme até dormir.
—
Ou quem sabe uma mini pizza, — me peguei pensando. — Aquele rapaz sempre vem às
sextas. O Bonifácio. — Ao som do nome dele, tudo que houve na sexta anterior, e
em todas as outras voltou com tudo para minha cabeça. Agora eu estava parada de
frente sua Kombi cheia de pizzas, e com um belo, muito fofo e carinhoso,
vampiro me encarando com um sorriso convidativo. Sem presas nem nada.
Me
sentei à mesa e esperei que ele viesse a mim. Em filmes sempre dizem para as
mulheres se fazerem de difíceis. E pouco tempo depois ele se aproximou.
—
Oi, tudo bem? — Perguntou.
Eu
o olhei bem fundo nos olhos e perguntei: — Por que eu sempre me esqueço quem
você é?
Ele
abaixou a cabeça, como o culpado de um crime se confessando, e respondeu: — É
um mecanismo de defesa idiota. Me desculpe. Eu já te disse, tenho medo das
pessoas ao meu redor se machucarem por minha causa. Então acabo sugerindo que
me ‘esqueçam’ quando saio de perto delas.
—
Pois é, eu não quero que você faça mais isso comigo. Eu quero me lembrar de
você, quero poder desejar voltar a te encontrar. Quero me pegar pensando em
você quando for deitar, ou quando estiver tomando banho. — Merda. Eu falei
demais novamente.
Bonifácio
me encarou perplexo, e depois de uma pausa constrangedora, segurou minhas mãos
entre as suas gélidas e confessou que era tudo o que ele queria. Que ele, na
verdade, apenas voltava para aquele lugar todas as sextas porque sabia que era
por onde eu passava. Então como prova de seu sentimento, ele me encarou e
disse: — Sabrina, se lembre.
°
—
Sabrina, se lembre! — Gritou uma voz que só ela ouviu, fazendo com que ela
acordasse assustada.
— Quem disse isso? — Perguntou ela
assustada. Então um nome veio à sua mente. — Bonifácio. Meu Deus, o Bonifácio.
— E tudo voltou a fazer sentido, como se estivesse cega e alguém retirasse o
que bloqueava sua visão.
A tensão e ansiedade faziam seu
coração bater pela boca. Sabrina não sabia se seria capaz de aguentar o dia,
para de noite, finalmente reencontrar aquele que a quem tanto aguardava.
E como uma forma de testar sua
saúde, aquela sexta se provara magnificamente lenta e maçante. Nem mesmo um
caso de traição entre dois de seus colegas de trabalho a fez perder o foco.
Quando terminou sua pilha de funções
pós expediente apenas ela e o zelador restavam no escritório. Sem intenção, ela
correu pelo velho senhor, quase o derrubando, se desculpando à distância
enquanto descia as escadas aos pulos. “O elevador demora muito. Eu não tenho
esse tempo todo. ”
O cheiro da massa ao forno a atingiu
antes dela virar a esquina e seu coração já pedia socorro. Quando então virou, o movimento nas mesas era
pouco, quase nenhum, o único cliente que estava lá parecia entretido demais com
o celular para perceber que uma estranha e o dono do “food truck” correram para
cima um do outro, se abraçando e beijando onde se encontraram.
— Eu me lembrei. Eu me lembrei!
— Oh, Drácula, eu esperei muito esse
dia. Achei que nunca iria se lembrar de mim completamente.
— Eu também. Todas as vezes que te
via sair, eu nunca sabia se quando fechasse a porta, saberia quem segurava
minha mãe instantes antes. Mas agora eu me lembro. É você, sempre foi você. Meu
companheiro secreto. Sempre ao meu lado.
— Sim. Sim. — E os dois se beijavam.
— Eu demorei para me lembrar, para
perceber. Mas agora eu sei. O que eu busquei minha vida toda, e sempre temi
assumir que buscava, esteve na minha frente tantas e tantas vezes e eu não via.
Não, agora vai ser diferente. Eu o vejo. Sei que o que busquei todo esse tempo,
eu já tinha. E agora que sei, não vou largar.
Os dois se abraçaram, um abrindo as
portas de seu mundo para o outro.
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