Meu Vampiro Secreto

             — Meu Deus que calor! — Disse Sabrina balançando a camiseta velha em uma tentativa de ventilar o corpo. A rua estava movimentada apesar da hora, mas ela achava melhor assim, Goiânia estava cada vez mais perigosa, e uma menina andando sozinha à noite era um convite para coisas perigosas.

            As mãos suadas se atrapalhavam na tela do celular enquanto ela espiava suas redes sociais.

            — , eu sabia, ele sempre a traiu! — Comentou vendo a notícia de um casal de famosos que se separara recentemente.

            Conforme se afastava do escritório onde trabalhava o movimento da avenida diminuía. Sua barriga roncava de fome, então uma busca pela melhor lanchonete do caminho começou.

            — Que pena, eu estava afim de uma mini pizza hoje. — Lamentou Sabrina enquanto passava pelo ponto onde um rapaz montava seu “food truck” de mini pizzas às sextas feiras. — Eu odeio segundas, nem para pizzas boas elas servem.

            A escolhida foi uma lanchonete que servia sanduiches, e medindo por sua fome, Sabrina pediria um “X-Tudo”.

            Um vento frio passou por seu corpo, entrando pela fina trama da camiseta e fazendo com que Sabrina se arrepiasse toda.

            — Nossa, quem abriu a geladeira?

            Então alguém riu às suas costas. Alguém estava seguindo ela. O medo a tomou e ela apertou o passo para tentar fugir do seu perseguidor. Mas ele estava muito perto, apenas esticou uma mão enluvada e a segurou pelo braço.

            Ele a puxou fazendo com que ela o encarasse. Era um rapaz de aparência boa, ele tinha o cabelo bem cortado e os dentes retos e brancos demais. Todos menos as presas. Estas eram compridas e pontiagudas. Quase caricatas, lembrando vampiros de filmes e séries de baixo orçamento.

            Mas por uma ironia do destino, aquele era realmente um vampiro, e ele confessou sua condição logo antes de atacá-la. Disse olhando bem no fundo dos seus olhos o que ele era, e o que faria. Sabrina estava paralisada, parecia que o olhar do rapaz a petrificara.

            — Você não vai conseguir se mexer até eu te liberar, então pode fazer o tanto de força que quiser. Quanto mais melhor. — Disse ele com um sorriso no rosto.

            Ele aproximou sua boca com presas pontiagudas do pescoço dela e tocou de leve os lábios em sua pele. O toque era muito frio, tão frio que parecia queimar. A reação do toque nela foi muito mais forte do que apenas a parte física, ele parecia sugar toda a força de Sabrina só com seus lábios. Mas foi quando as presas furaram sua pele que as coisas mudaram.  Um turbilhão de pensamentos voou dentro de sua mente. Ela quase se afogou com a quantidade de informação.

            Sem que seu agressor percebesse, esse choque fez com que Sabrina retomasse controle de seu corpo. Ela o chutou com força entre as pernas e o empurrou.

            O rapaz caiu no chão, com manchas de sangue no queixo e uma expressão de dor e surpresa no rosto, enquanto cobria suas partes íntimas um pouco tarde demais.

            — Sua... como?! — Balbuciou ele com raiva.

            Sabrina não perdeu tempo com ele. Estava perto de casa, então correu o mais rápido que pôde, até finalmente entrar em seu apartamento e trancar a porta.

            Os furos não eram grandes, mas faziam finos caminhos de sangue que escorriam por seu pescoço. O “beijo” do agressor tinha deixado ela exausta. Ela se esforçou para entrar no chuveiro, mas precisava, seu corpo parecia estar todo contaminado com o toque do rapaz.

            Agora com pequenos curativos no pescoço, um grande copo de leite quente com achocolatado e sua coberta favorita ela tremia na cama. O sono demorou a vir, e todas as vezes que fechava os olhos por muito tempo a mão enluvada do rapaz aparecia e a agarrava, trazendo-a de volta para a noite barulhenta.

            O lençol estava empapado de suor quando Sabrina finalmente caiu no sono.

 

°

 

            Eu estava andando para casa, como sempre faço todas as noites após o trabalho. Não sei explicar como, mas eu sabia que era mais do que um sonho, era muito realista. Como uma memória que fora esquecida.

            Minha barriga roncou tão alto que eu pensei que os outros tivessem ouvido.

            — Vamos experimentar uma mini pizza hoje, ‘patroa’? — Ofereceu o rapaz do ‘Food Truck’.

            — Por que não? — Eu estava com fome, e sempre quis experimentar as pizzas dele.

            O rapaz gordinho trouxe a pizza até minha mesa quando esta ficou pronta.

            — Aqui está.

            — Brigada.

            — Vai querer tomar alguma coisa?

            — Não, só a pizza por hoje — Eu não tinha dinheiro para mais do que a pizza, mas ele pareceu perceber que esse era o motivo.

            — Toma aqui, é por conta da casa — Disse ele retornando com uma lata de refrigerante.

            O rapaz era simpático, e a pizza estava deliciosa. As mesas já estavam vazias, eu não tinha percebido que era a única lá. Ele parecia esperar uma nota sobre sua culinária.

            — Esfá muifo foa — Meu Deus, eu falei com a boca cheia de pizza.

            Ele foi educado, apenas sorriu e agradeceu o elogio.

            — Como você se chama? — Perguntei depois de um tempo para engolir a comida.

            — Bonifácio, e o seu?

            “Bonifácio”. Eu não disfarcei muito bem minha surpresa.

            — Sabrina, é um prazer.

            Ele parecia querer conversar, mas mantinha distância. Então eu o convidei para se sentar comigo.

            — Você tem certeza?

            — Sim, eu não gosto muito de comer sozinha.

            O rapaz se sentou de frente para mim calado.

            — Você é daqui, Bonifácio?

            — Não, — riu ele — eu sou de bem longe. E você?

            — Também não, mas não sou de tão longe — Que piada ruim. Mas ele pareceu gostar.

            Nós conversamos ali por muito tempo. Ele se soltou, gostava de falar de política e tinha um ótimo senso de humor – ele ria bastante das minhas piadas, e seus comentários eram inteligentes – mas seu grande sonho era se tornar chefe de cozinha.

            O movimento na rua tinha caído bastante quando resolvemos olhar para os lados. Já era tarde.

            — Eu preciso ir. Foi muito bom te conhecer — disse, sorrindo enquanto me levantava e pegava minhas coisas.

            — Foi muito bom te conhecer também — Ele parecia triste com a despedida. Como se nunca mais fossemos nos ver.

            Ele esticou a mão hesitante para se despedir. Então quando peguei sua mão ele disse com um olhar triste: — Me desculpe, eu estou com muita fome, eu preciso.

°

 

            O sonho se desfez e Sabrina acordou. Já era de manhã e os acontecimentos da noite anterior voltaram para assombrá-la. Ela tivera algum sonho bom, mas não conseguia se lembrar sobre o que foi.

            Então, reunindo coragem, enquanto era incentivada pelas amigas no grupo de mensagens, ela se levantou e começou sua rotina matinal de preparação para encarar a tediosa rotina no trabalho.

            — Você não veio sozinho hoje, ein? — Brincou ela olhando para o sol, que parecia ter trazido outros dois irmãos tão quentes quanto ele, enquanto saia de seu prédio.

            Todos os homens que via na rua aparentavam persegui-la, um deles até sorriu para ela, e ela podia jurar que ele tinha grandes presas brancas e pontiagudas.

            No escritório não fora diferente. Seu chefe, que ela sempre achou tratar os outros muito friamente, agora parecia ter tido sua temperatura corporal reduzida também. Um aperto de mão quando ela chegou ao escritório e o resto do dia a fez suar como louca. Cada vez que ele falava algo, ou pedia certo relatório, os pelos de sua nuca se eriçavam.

            Em dias ruins, ou muito cansativos, ela gostava de se dar “presentes”, como: lanches mais caros, ou a volta do escritório de uber, algo simples, mas que a faziam se sentir especial. Nesta terça-feira, porém, a volta sozinha no carro com o motorista, e o entregador do jantar que pedira por aplicativo, a assustaram tanto que quase estragaram a alegria dos “presentes”.

 

°

            Era sexta-feira. Eu sabia porque estava finalizando o relatório da semana. Meu Deus meu cabelo estava feio, parece que eu não o lavei a semana inteira.

            No elevador do escritório minha barriga roncou tão alto que o ascensorista fez uma cara de dó para mim, como se eu não comesse a dias. Um ponto positivo, na última sexta eu comi uma deliciosa mini pizza, com sorte o rapaz estará lá hoje novamente.

            — Boa noite! — Nossa como o cheiro é bom! — Eu vou querer uma, por favor.

            Ele não parecia se lembrar de mim, se bem que, como era o nome dele mesmo? Era algo engraçado... Patrício?

            — Oi, Sabrina — disse ele com um sorriso, enquanto colocava minha mini pizza na mesa.

            — Oi, tudo bem?

            Ele pareceu muito contente com minha resposta, parecia esperar que eu não gostasse dele.

            — É Bonifácio, não? O seu nome. — Eu me lembrei, bom, na verdade estava escrito em sua Kombi, mas acho que eu me lembrei antes de ler.

            — Isso mesmo, como o grande político que auxiliou na Independência do Brasil. — Era estranho, mas ele parecia se orgulhar demais deste seu outro Bonifácio.

            — Me desculpe, quem?

            — Ah, ninguém. — Ele respondeu sem graça.

            Quando estava por acabar minha pizza ele se aproximou novamente, como quem queria puxar conversa, então eu disse: — Por que não me conta mais sobre esse tal de Bonifácio, o político da Independência?

            Seus olhos brilharam de felicidade e o que parecia orgulho, ele se aproximou rapidamente da mesa, com mais agilidade do que eu esperaria de alguém “rechonchudo”, e como se eu tivesse tirado a rolha de uma banheira, ele começou a falar sem parar: — Bom, para começar, na época eles eram chamados de “estadistas”, ele era também poeta e um grande estudioso das artes naturais...

            A aula durou um bom tempo, mas eu não me cansei, Bonifácio falava de seu xará com tanta empolgação que o tempo não parecia fazer diferença. Quando nos demos conta, a rua estava vazia e apenas nós dois restávamos ali.

            — Aquele último dia eu me senti mal por não a acompanhar até sua casa, senhorita. Gostaria que hoje pudesse me retratar.

            — Você ficou preso século XIX? — Meu Deus que piada ruim, o garoto gostava de uma linguagem rebuscada, e daí? Mas ele pareceu não se importar, na verdade riu por um bom tempo.

            — Tudo bem, eu aceito. — Eu disse, aceitando a carona dele.

            — É esse daqui — apontei meu prédio. — Não é muito novo, nem muito grande, mas é tranquilo.

            — Ah sim, é muito bonito. — Ele estava sendo simpático, meu prédio é feio

            Então, quando fui cumprimentá-lo com um aperto de mãos, Bonifácio se recuou e quase caiu para fora da janela de sua Kombi.

            — Me desculpa, eu não queria te assustar.

            — Ah, sim, não, sim... Eu, não. Hoje não.

            — Hoje não?

            — Não, hoje não. Ainda não, nós temos pouca intimidade, não é? Não há necessidade para contato físico, só estava fazendo um favor — se explicou ele.

            Era estranho, eu parecia me lembrar de pegar em sua mão na semana passada. Mas eu peguei? O que foi que ele disse logo antes? Que memória ruim a minha. Bom, nada errado com um rapaz que respeita uma moça, é estranho nos dias atuais, mas eu até que gosto do ar dele de “antigo”.

            — Tudo bem, sem contato físico então. Mas muito obrigado por me trazer, e obrigado pela mini pizza, estava realmente boa — Ah não, eu acariciei minha barriga. Por que eu fiz isso? E ele olhou diretamente para ele. Eu preciso perder alguns quilinhos.

            — Sem problema. Eu espero te encontrar na próxima sexta! — Gritou ele de dentro do carro quando eu entrava no prédio, eu sorri concordando.

 

°

O alarme soou no quarto e Sabrina acordou agitada. “Agora estou sonhando com o rapaz da pizza, era só o que me faltava. ” Pensou ela já se esquecendo dos detalhes do sonho, o nome dele fugindo da memória e dando espaço a pensamentos mais apavorantes: quarta-feira era dia de reuniões.

            O pavor de todo e qualquer homem diminuíra um pouco, ela não saberia dizer se porque tinha muito trabalho acumulado, ou se porque sonhara com um que era diferente de todos os outros. Agora o sonho parecia um filme que ela assistira quando tinha apenas doze anos, todos os detalhes haviam sumido, mas sentia um calor no peito quando pensava nele. Aquele rapaz cujo nome ela sequer se lembrava.

            O caos no escritório estava generalizado, alguns corriam de um lado para o outro carregando pilhas de papeis e documentos, enquanto outros digitavam tão avidamente que os teclados provavelmente não durariam outra semana.

            — O que há com todos vocês? — Perguntou Sabrina interceptando Elisa, uma jovem estagiária que passava correndo com o que pareciam ser décadas de relatórios nos braços.

            — Hoje na reunião, — ela parou para respirar — tem um diretor — outra pausa — direto de Portugal. — Concluiu ela, e ouvindo alguém chamar seu nome, correu sem olhar para Sabrina novamente.

            — Um diretor? Aqui? Nós estamos encrencados. — Sabrina anunciou para si compreendendo o motivo de toda a comoção.

            Metade do pessoal estava reunida na sala de reuniões quando seu chefe entrou e anunciou o que todos sabiam: “Hoje temos uma visita ilustre. O Senhor Cardoso Rocha, Diretor de Negociações, Cobertura e Fechamento de Assuntos Diversos; estará presente em nossa reunião. Ele veio diretamente de Lisboa, e eu espero que não me envergonhem na frente dele. ” Então ele abriu a porta e convidou o homem para entrar.

            Os dedos dos pés de Sabrina pareceram congelar no sapato apertado, ela queria correr. Era ele. O homem que a atacara duas noites atrás. Estava mais corado e menos pálido, e quando sorriu, seus dentes pareciam de um humano normal. Mas os olhos sem brilho ainda eram os mesmos. O terno impecável, a luva de couro preta e o cabelo lambido também.

            Quando ele falou, a temperatura da sala caiu. “Meu Deus, ele é meu chefe. O que eu vou fazer agora? E se ele me reconhecer? E quiser se vingar pelo meu chute? Eu deveria denunciá-lo! Que besteira, não tenho provas contra o homem, e ele provavelmente tem imunidade aqui no Brasil. ”

            A reunião durou uma hora inteira. Uma hora com todos os sessenta minutos, todos os três mil e seiscentos segundos de medo. Medo que ele olhasse para ela e a reconhecesse. Porém, ele não o fez. E se a reconheceu, não demonstrou.

            Quando a reunião acabou, Sabrina saiu correndo da sala direto para o banheiro. Ficou lá por um tempo se recompondo e retornou. Seu chefe estava sozinho agora, então ela aproveitou a oportunidade e explicou que precisava ir embora, não estava se sentindo bem. Felizmente, sua expressão, o rosto suado e a boca sem cor ajudaram a convencê-lo.

            Sabrina pegou suas coisas e foi embora correndo, torcendo para não encontrar o Diretor no caminho até em casa. “O que ele quer aqui? Por que veio até mim? ” Perguntas corriam de um lado até o outro dentro de seu cérebro. Mas a única resposta que conseguiu achar fora: “Foi uma coincidência. Ele não se lembra de mim porque eu era apenas uma qualquer. Naquela noite na rua, e hoje na sala. Ele faria o mesmo com qualquer outra pessoa. ”

            Chegando em casa ela estava tão enjoada de pavor que passou boa parte da tarde correndo da sala até o banheiro. Até que finalmente cedeu e adormeceu no sofá mesmo.

 

°

            O cheiro de pizza me atraiu para o “food truck” sem que eu percebesse. Era sexta-feira novamente. A semana corrida havia lavado a memória de meu novo amigo, mas agora, vendo sua Kombi, sentindo o cheiro de queijo derretido e massa assando, eu me lembrei. Como pudera esquecer? Em tão pouco tempo e já éramos próximos como amigos de antigas datas.

            O sorriso trocado, os olhares cruzados, estávamos ansiosos para o movimento do “food truck” reduzir para podermos nos sentar juntos.

            Quando finalmente todos se foram, Bonifácio se aproximou e eu só então percebi como estava magro. Parecia que não comia a dias. Um Bonifácio completamente diferente do que vi na semana anterior.

            Ele se sentou e começou, com um tom consideravelmente sério, explicando que tinha uma condição física especial, por isso evitava se aproximar demais das pessoas. Mas eu não me importei, já havia me afeiçoado pelo rapaz sonhador.

            Ele então continuou, disse que não era algo simples, e que entenderia caso eu quisesse cortar relações com ele, mas que estava pronto para me contar a verdade. E como contou...

            Ele confessou ser um vampiro, um ser que vive da energia das outras pessoas. Suga para se manter forte. Mas que diferente de outros, ele o faz apenas pelo toque. Então segurando minhas mãos, com dedos que pareciam pedaços de gelo de tão frios, ele demonstrou sua habilidade conforme meu corpo amolecia.

            O toque não durou mais do que alguns segundos, e mesmo assim, o mundo girou ao meu redor. Quando consegui me focar, ele agora não parecia mais adoentado, estava corado e parecia menos magro também.

            — E com essa quantidade eu consigo me manter por alguns dias, talvez até mais do que uma semana. — Contou ele.

            — Você...

            — Sim, fiz isso com você, sem sua permissão, na noite em que nos encontramos. Mas também induzi que não se lembrasse, para que o terror não a assolasse. Me garanti disso.

            — Mas eu me lembrei.

            — Sim. Você se lembrou. — Concordou ele com tristeza na voz.

            — E isso é ruim?

            — Essa vida não é segura, várias vezes vi pessoas boas ao meu redor se perderem.

            — Nenhuma vida é segura. Quando saímos de casa todas as manhas corremos riscos. E mesmo sem sair, acidentes domésticos ainda são uma grande causa de mortes em nossa sociedade.

            — É, acho que você está certa.

            — E.... e as presas? Vocês têm presas pontiagudas? — Perguntei curiosa.

            — Bom, depende, — respondeu ele com um sorriso. Suas presas agora cresciam lentamente. — É como um gato, quando este coloca as garras para fora quando caça. É um mecanismo excelente, elas sempre cortam os lábios inferiores se deixarmos assim. — Apontou ele quando as presas alongadas marcaram os lábios onde apertavam a carne.

            Sua expressão ajudou, ele não era um vampiro terrível de um filme americano, era um rapaz com sonhos e expectativas, e que, como ele dissera, tinha uma condição médica especial.

            — Bom, para todos os efeitos, eu não me importo de você ser quem você é. Eu até meio que gosto. — Ah, não. Falei mais do que deveria. Será que ele percebeu?

            — Ah, eu, é. Eu também gosto. Não de ser diferente. De você. — Disparou ele nervosamente. — Quero dizer, não que eu não goste de ser quem sou, eu só concordei com você dizendo que gostava de mim, e eu também gosto. De você, isso é. E de mim. Ah, Drácula, me ajude. — Concluiu Bonifácio.

            — Que bom que você gosta. — Meu rosto está em chamas, o que eu faço agora?

            — Existem mais como você? — Perguntei finalmente.

            — Ah, sim. Muitos mais. Uma sociedade inteira. Mas não faço mais parte dela. Meu pai fez questão de me expulsar quando não quis seguir seu ‘plano de carreira ideal para um jovem promissor’.

            Bonifácio então me contou que seu pai era, e continuava sendo, José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Independência. E seu objetivo para o filho era que seguisse na política também. Mas que o gosto pela cozinha o captara desde cedo.

            Conversamos por várias e várias horas, e quando decidi ir para casa, fiz algo que nunca havia cogitado, convidei um rapaz para entrar em meu apartamento.

            Bonifácio e eu subimos e continuamos nossa conversa lá. As horas se passaram e, para minha surpresa e dele, o convidei para que dormisse lá. Com certa resistência, não dormi sozinha naquela noite.

 

°

               A noite no sofá cobrou seu preço logo pela manhã. Sabrina andava dura até o trabalho. Dura e apavorada. Não tinha contado para ninguém sobre o chefe vampiro, e agora, teria que encarar o monótono trabalho sabendo que era empregada de um ser que abusava das pessoas.

            “Mas nem todos os vampiros são maus, certo? ” Pensou ela consigo mesma.

            — Como que podem não ser? Eles sugam sangue. É claro que são maus. — Disse ela em voz alta. Mas no fundo de sua mente, ela sentia não eram. Nem todos eram assim. Inclusive, deveriam existir alguns que não precisassem de sangue. Ela queria acreditar nisso, mas o medo ainda era forte demais.

            No trabalho, poucos deram importância para o fato de um Diretor ter tido lá no dia anterior. A letargia costumeira já abraçara a todos, e até mesmo seu chefe parecia mais tranquilo agora que a vistoria havia acabado.

            O Diretor voltara para Portugal, e todos voltaram para suas rotinas sem graça. Mas havia algo diferente. Algo escondido, velado. Ela queria se lembrar, mas como quando se bebe demais na noite anterior, e na manhã seguinte, mesmo vendo as fotos, não consegue se lembrar do que fez, Sabrina não conseguia lembrar exatamente o que era.

            As quintas-feiras eram sempre as piores para ela. Se arrastavam bloqueando o final de semana. E quando finalmente acabavam, traziam uma tonelada de relatórios semanais para entregar no dia seguinte.

            Mas as sextas, apesar dos relatórios, não eram tão ruins, ponderou Sabrina. Elas também têm coisas boas: como a expectativa do efêmero, mas potente descanso por vir. O sossego, e algo mais, algo que ela não conseguia se lembrar.

            O dilema entre odiar e temer vampiros ou se afeiçoar e gostar deles, sem saber porque, a tomou por conta, encerrando seu dia pela metade tornando todo o resto cinza e sem importância. Até sua deliciosa cama, de quem ela sempre sentia mais saudade, pareceu dura quando se deitou pela noite.

 

°

 

— Finalmente, adeus semana, adeus pessoas enjoadas. Olá final de semana, olá Netflix. — Eu não aguentaria mais nem um segundo no escritório. Corri para o elevador quando ‘cliquei’ o botão enviar no e-mail que redigi para meu chefe.

A rua, como sempre, estava apinhada de pessoas apressadas, prontas para curtir uma boa noitada. A noitada que eu tinha em mente era bem diferente, pediria alguma comida, talvez até tailandesa, e assistiria algum filme até dormir.

— Ou quem sabe uma mini pizza, — me peguei pensando. — Aquele rapaz sempre vem às sextas. O Bonifácio. — Ao som do nome dele, tudo que houve na sexta anterior, e em todas as outras voltou com tudo para minha cabeça. Agora eu estava parada de frente sua Kombi cheia de pizzas, e com um belo, muito fofo e carinhoso, vampiro me encarando com um sorriso convidativo. Sem presas nem nada.

Me sentei à mesa e esperei que ele viesse a mim. Em filmes sempre dizem para as mulheres se fazerem de difíceis. E pouco tempo depois ele se aproximou.

— Oi, tudo bem? — Perguntou.

Eu o olhei bem fundo nos olhos e perguntei: — Por que eu sempre me esqueço quem você é?

Ele abaixou a cabeça, como o culpado de um crime se confessando, e respondeu: — É um mecanismo de defesa idiota. Me desculpe. Eu já te disse, tenho medo das pessoas ao meu redor se machucarem por minha causa. Então acabo sugerindo que me ‘esqueçam’ quando saio de perto delas.

— Pois é, eu não quero que você faça mais isso comigo. Eu quero me lembrar de você, quero poder desejar voltar a te encontrar. Quero me pegar pensando em você quando for deitar, ou quando estiver tomando banho. — Merda. Eu falei demais novamente.

Bonifácio me encarou perplexo, e depois de uma pausa constrangedora, segurou minhas mãos entre as suas gélidas e confessou que era tudo o que ele queria. Que ele, na verdade, apenas voltava para aquele lugar todas as sextas porque sabia que era por onde eu passava. Então como prova de seu sentimento, ele me encarou e disse: — Sabrina, se lembre.

°

 

— Sabrina, se lembre! — Gritou uma voz que só ela ouviu, fazendo com que ela acordasse assustada.

            — Quem disse isso? — Perguntou ela assustada. Então um nome veio à sua mente. — Bonifácio. Meu Deus, o Bonifácio. — E tudo voltou a fazer sentido, como se estivesse cega e alguém retirasse o que bloqueava sua visão.

            A tensão e ansiedade faziam seu coração bater pela boca. Sabrina não sabia se seria capaz de aguentar o dia, para de noite, finalmente reencontrar aquele que a quem tanto aguardava.

            E como uma forma de testar sua saúde, aquela sexta se provara magnificamente lenta e maçante. Nem mesmo um caso de traição entre dois de seus colegas de trabalho a fez perder o foco.

            Quando terminou sua pilha de funções pós expediente apenas ela e o zelador restavam no escritório. Sem intenção, ela correu pelo velho senhor, quase o derrubando, se desculpando à distância enquanto descia as escadas aos pulos. “O elevador demora muito. Eu não tenho esse tempo todo. ”

            O cheiro da massa ao forno a atingiu antes dela virar a esquina e seu coração já pedia socorro. Quando então virou, o movimento nas mesas era pouco, quase nenhum, o único cliente que estava lá parecia entretido demais com o celular para perceber que uma estranha e o dono do “food truck” correram para cima um do outro, se abraçando e beijando onde se encontraram.

            — Eu me lembrei. Eu me lembrei!

            — Oh, Drácula, eu esperei muito esse dia. Achei que nunca iria se lembrar de mim completamente.

            — Eu também. Todas as vezes que te via sair, eu nunca sabia se quando fechasse a porta, saberia quem segurava minha mãe instantes antes. Mas agora eu me lembro. É você, sempre foi você. Meu companheiro secreto. Sempre ao meu lado.

            — Sim. Sim. — E os dois se beijavam.

            — Eu demorei para me lembrar, para perceber. Mas agora eu sei. O que eu busquei minha vida toda, e sempre temi assumir que buscava, esteve na minha frente tantas e tantas vezes e eu não via. Não, agora vai ser diferente. Eu o vejo. Sei que o que busquei todo esse tempo, eu já tinha. E agora que sei, não vou largar.

            Os dois se abraçaram, um abrindo as portas de seu mundo para o outro.

            Sem perceber, o ser humano – vampiro ou não – busca a felicidade, a realização pessoal ou profissional, e um complemento em tudo que faz. Mas muitas das vezes, já temos esse complemento dentro de nós mesmos. Basta apenas acordar e ver, com olhos de ‘recém-apaixonado’ o que temos. A felicidade não está aonde se busca, mas dentro de quem busca.

Comentários

O mais famoso:

Como na Realidade

Homem-alienígena