Como na Realidade
1
O primeiro dia no quartel não é
fácil para quase nenhum soldado. Valentina, segundanista, reconheceu o medo que
exalava dos novos recrutas.
—
Nomes, soldados! — Ordenou ela se impondo sobre os novatos.
— Enzo.
E o seu? — Respondeu o maior deles, tirando atenção do próprio medo batendo com
a mão no peito.
— Valentina, e eu sou sua
superior, você deve mostrar respeito comigo.
— Com o perdão, madame,
mas você é mulher. Não recebo ordens de mulheres. — Desafiou o segundo,
espantando os outros dois com a resposta.
Valentina,
tomada de raiva, cerrou os punhos e, quando ia avançar sobre o novato, avistou
um superior que fazia a ronda pelo quartel, e decidiu mudar a estratégia de
ataque.
—
Senhor, com sua licença. Tenho estes dois recrutas aqui comigo. Há alguém que
possa apresentar o lugar para eles? — Perguntou ela com respeito, chamando o
superior que passava por lá perto.
—
Valentina, encarrego você de tal serviço. — Disse ele sem paciência. — E,
quanto a vocês, obedeçam-na. — A ordem fez um sorriso se curvar nos lábios de
Valentina.
— Vocês o escutaram.
Vamos, temos muito o que ver. — Disse ela pegando os dois recrutas pelas mangas
e os levando consigo para longe do superior.
Ela
esperou estar longe o bastante, então deu um giro rápido, terminando em um soco
no estômago do soldado atrevido. Ele se curvou, cuspiu ao chão e levantou
lentamente, temendo uma nova agressão.
— Vocês
escutaram o superior, — disse ela com o dedo em riste na face dos dois — eu sou
uma autoridade para vocês. Vocês me devem obediência. Pare de frescura, eu
segurei a mão! — Ralhou ela, vendo a umidade se formar nos olhos do outro
soldado. — E agora, vai me dizer seu nome? — Perguntou ela o segurando pela
gola da camiseta.
—
Miguel, — disse ele com dificuldade — Miguel Octavio.
—
Miguel. Sejam bem-vindos à guerra, rapazes. — Riu ela, se virando e deixando os
dois no pátio.
As rotinas de treinamento
envolviam todos os tipos de exercícios. Até mesmo escritos, para a surpresa de
Enzo e Miguel. Quase todos eram ministrados por superiores graduados. Porém,
haviam atividades presididas por soldados veteranos. Ao final do dia, os
recrutas foram reunidos novamente, para uma última bateria de testes. Este,
liderado por Valentina, a veterana agressiva, como a haviam batizado.
—
Alguns de vocês já me conhecem. Sou Valentina, sua veterana. E estes, são
companheiros de classe. — Apontou ela para dois brutamontes que a cercavam, sem
esforço para esconder o sorriso malicioso. — Vocês ainda não são parte oficial
do quartel, não antes de passarem pelo ritual de iniciação.
Os
brutamontes já haviam passado por aquilo, sabiam o que fazer, cada um cercou o
grupo de recrutas por um lado. Como cães treinados pastoreando ovelhas. Os
novatos foram espremidos em um pequeno círculo, todos de frente para Valentina.
— Todos
sabem do que se trata isso? — Perguntou ela, segurando nas mãos uma potente
arma de choque. E, observando o pânico crescer entre os recrutas, falou com
orgulho: — Façam uma fila única, vocês vão ser apresentados ao meu brinquedo um
por um.
Não foi
por respeito, nem por bravura, mas todos os recrutas formaram a fila, seguindo
o comando por puro medo. Um dos brutamontes deu um chute em um novato que
parecia recuar mais do que os outros. Enzo e Miguel tremiam, mas já haviam
percebido que a veterana agressiva se alimentava de medo, então firmaram a
postura e se misturaram em meio aos outros recrutas.
O
primeiro se aproximou da veterana, ainda em dúvida sobre o que aconteceria.
Então ela, sem dó, tirou as dúvidas de todos do grupo. Um avanço rápido e ela
empurrou a pequena arma no peito do recruta. Seu corpo se estremeceu por muito
tempo, até suas pernas cederem e ele cair de joelhos. Valentina ainda manteve a
arma no peito do rapaz por alguns segundos. Sorrindo como um caçador que acabou
de abater um animal grande.
— O
próximo. — Disse ela, sem tirar os olhos do recruta de joelhos.
Os
brutamontes empurravam os “já iniciados” para longe do grupo, enquanto cada um
se prostrava diante de Valentina, e recebia a carga da fúria e da arma da
veterana agressiva.
O grupo
diminuía, apertando Enzo e Miguel para mais perto da agressora. Até que Miguel,
sentindo o medo no novo amigo, decidiu se apresentar antes. A veterana
agressiva pareceu reconhecer o soldado. E, se lembrando da afronta que sofrera
naquela manhã, decidiu que aquele merecia mais do que os outros.
Ela se
aproximou lentamente, encostou a arma na barriga de Miguel e a acionou. Um
grito agudo escapou da garganta tensionada do soldado. Suas mãos doíam tamanha
a força que ele apertava.
Miguel
sentiu o gosto de sangue se espalhar pela boca, ele havia mordido os lábios no
choque. Sua visão, já turva pela dor, se escureceu quando Miguel caiu
desacordado ao chão.
2
— E
você não contou o que houve? — Perguntou Enzo.
— Não
pude. Você sabe que ela tem autorização dos superiores. — Respondeu Miguel.
— Mas
ela não é sua superior. — Cochichou Enzo, olhando ao redor, temendo avistar a
veterana agressiva, ou algum de seus amigos. O quartel parecia vazio àquela
hora da manhã, poucos soldados andavam por lá.
— De
toda forma, não é tão ruim assim. — Disse Miguel, levantando discretamente a
camiseta, mostrando uma queimadura na barriga onde a arma de choque acertou.
—
Parece bem ruim.
— Só
dói se eu ando muito rápido, ou se inspiro muito ar.
—
Miguel, Enzo. — Chamou uma voz que eles reconheceram com um arrepio na espinha.
Os dois
se viraram e deram de cara com Valentina. Ela parecia contida.
— Quero
me desculpar pelo que houve ontem. — Disse ela olhando para Miguel. — Aquilo
não passava de uma brincadeira, mas eu me excedi. Não tinha intensão de
machucá-lo. — Explicou ela esticando a mão para um cumprimento.
Miguel
hesitou, mas acabou aceitando o cumprimento, mostrando um sorriso sem graça no
rosto.
—
Espero que possamos ser amigos. — Sorriu ela, se virando e deixando os dois
sozinhos novamente.
— Você
acredita nisso? — Perguntou Enzo.
— Não
sei, ela pareceu honesta.
— Você
ainda tem muito o que aprender soldado. — Brincou ele.
O sol
se empunha sobre o pátio, quase ao meio-dia, quando se juntaram para o almoço.
Enzo e
Miguel se sentaram afastados da maior parte dos soldados. E, quando começavam a
comer, Enzo viu Valentina, e seus capangas, se aproximando de sua mesa.
— A
veterana agressiva. — Alertou ele.
—
Rapazes, — disse ela com um sorriso — o que têm de gostoso aí? — Indagou
olhando suas bandejas.
— Nada
de demais. — Disfarçou Miguel tentando esconder seu sanduíche.
— Ah,
Miguelzinho, nós somos amigos agora, não? Por que não quer compartilhar sua comida
comigo?
— Eu
não tenho para nós dois. — Tentou argumentar.
— Eu só
quero uma mordida. — Sorriu ela.
O
recruta percebeu que não ganharia aquela discussão. Então entregou seu
sanduíche. Valentina o pegou com seus dedos finos, examinou, e deu uma minúscula
mordida no pão.
— Sabe,
não gostei muito. — Disse ela com desdém. Então, soltou o sanduíche, que se
espatifou no chão. — Talvez amanhã você devesse trazer algo mais gostoso para
mim, já que somos amigos, não? — Disse ela, e saiu pisoteando os restos do
sanduíche no chão, em meio a risadas dos brutamontes.
— Eu te
avisei. — Disse Enzo quando ela já estava longe o suficiente.
— Eu
sei. Agora, eu sei. — Respondeu Miguel, repartindo o seu sanduíche e entregando
metade para o amigo.
Em cada
uma das atividades no restante daquele dia, Enzo e Miguel se entreolhavam. Os
dois estavam com fome, o almoço havia sido pouco para os dois. E Enzo se
compadecia todas as vezes que o amigo fazia uma careta, sofrendo com a dor da
queimadura.
3
As
quartas-feiras eram o dia de treinamento técnico, em que cada soldado podia
praticar com alguma modalidade de arma de fogo, eletrônico, mecânico, ou
utilitário que escolhesse.
Eles
combinaram em praticar com armas de fogo, então, quando se encontraram cedo,
cada um trazia uma em mãos.
Miguel
escolhera uma pistola, era pequena, fácil de se esconder, de saque rápido e com
bastante munições. Enquanto Enzo trazia um fuzil. Grande impacto, alta precisão
e alcance.
Enzo
começou explicando e apresentando sua escolha, depois, Miguel defendeu a sua.
Pouco tempo havia passado até que um desejava secretamente ter escolhido a arma
de fogo que o outro escolhera, mas sem antes abrir mão da sua.
Acordando que deveriam testar a arma um do
outro também, os soldados trocaram entre si. Miguel se sentia poderoso, com o
grande fuzil nas mãos. E Enzo, se apaixonou pela praticidade da pistola.
As
horas voaram naquela manhã, que parecia não poder ser atrapalhada por nada. O
encanto dos soldados foi quebrado com um riso fino e estridente. Os dois sabiam
quem vinha, então se preparam.
— Uau,
que armas excelentes vocês têm aí. — Elogiou com falsidade a veterana agressiva,
apreciando o que os garotos tinham nas mãos.
—
Valentina, essas armas são nossas. Nós as trouxemos, nós estamos praticando com
elas. — Se defendeu Miguel.
— Mas
já não praticaram demais com elas? — Fingiu confusão. — Vou dizer uma coisa.
Que tal trocarmos? — Ofertou ela, enquanto tomava o fuzil das mãos de Miguel,
largando no chão um velho revólver enferrujado de cano curto. — Sim, acho
melhor assim. Vocês precisam praticar com todas as armas que puderem, afinal.
— Nós
vamos ter problemas se não voltarmos com elas. — Disse Enzo, pensando em sua
arma, agora nas mãos de Valentina.
— Por
que teriam? Vocês trocaram comigo. Não há problemas nisso. — Respondeu ela
sorrindo. Ela testou o funcionamento do fuzil, e pareceu gostar do que
descobriu. Então ignorou os apelos dos recrutas e os deixou falando aos ventos.
4
Na
manhã seguinte, Miguel trouxe uma carta de seu antigo superior, há ser
apresentada ao comandante deste batalhão. Ele não sabia o conteúdo, mas, o que
quer que fosse, não deveria ser compartilhado. O comandante, ao ler o conteúdo
da carta, a queimou em um vasilhame de vidro à mesa, e dispensou o soldado,
curioso, o mandando retornar com suas atividades programadas para aquele dia.
—
Então, você não perguntou o que a carta dizia? — Questionou Enzo.
— Não
perguntei. Mas, o que quer que fosse, ele não gostou. Fechou o rosto, uma
verdadeira careta de meter medo.
— E
sobre o armamento de ontem?
—
Recebi uma advertência do meu antigo comandante. A arma pertencia ao seu
quartel, e ele não ficou nada feliz quando retornei sem ela. Um processo foi
iniciado, e fui interrogado também. Não só sobre o que houve com o armamento,
mas sobre o funcionamento deste quartel.
— Você
contou sobre a veterana agressiva?
—
Não.... Mas acho que ele suspeita de algo.
— Bom,
o lado positivo é que: nosso dia hoje será bem atarefado, duvido que você se
preocupe com qualquer coisa além de suas funções até o final do dia. — Brincou
Enzo, vendo a preocupação no rosto do amigo.
Enzo
estava certo. Aquele dia fora o mais apertado de todos os outros. Fizeram
exercícios físicos até quase colocarem os bofes para fora. Aprenderam novas
técnicas de infiltração, camuflagem e investigação. Treinaram conhecimentos
gerais e específicos. Mas, em nenhum momento, Miguel se livrou do medo que o
cercava. O medo de ser abordado por um risinho fino e estridente, seguido de
pontapés e socos.
Não foi
até o final do dia, que Enzo percebeu algo e contou a seu amigo. Valentina, a
veterana agressiva, não havia aparecido o dia inteiro no quartel. Nem mesmo
seus amigos brutamontes. E isso, foi o que trouxe paz a Miguel, finalmente.
5
Miguel
entrava pelo portão do quartel, quando alguém o puxou para trás, de volta para
a rua. Ele se virou para ver quem o puxara, e deu de cara com Valentina e seu
bando de brutamontes. Eles o cercavam, bloqueando sua visão para fora do cerco
que se formava.
— Você
me denunciou! — Balbuciou Valentina, a boca espumando de raiva. — Eu estava
tranquila até então, mas, agora você vai ver. — Finalizou ela com um belo soco
no rosto de Miguel.
Ele
caiu ao chão, e não se conteve, começou a chorar. Os brutamontes, parecendo não
reconhecerem essa específica reação humana, se espantaram e abriram o círculo.
Deixando visível para o comandante, que passava por ali na hora exata, a cena
que acabara de ocorrer.
—
Valentina! Já para minha sala agora! — Ordenou ele. — Eu vou chamar os seus
pais, e vou chamar os pais dele também. — Disse o diretor, apontando para
Miguel ao chão.
Os pais
de Miguel chegaram antes dos de Valentina. Recebendo de antemão, os relatos do
filho, em meio a soluços e lágrima, sobre o que vinha acontecendo na creche. A
garota, um ano mais velha que Miguel, argumentava em alguns momentos, tentando
fazer parecerem menores as agressões. Mas, ao final da conversa, tanto o
diretor, quanto os pais de Miguel, e seu novo amigo, Enzo, haviam colocado as
histórias a limpo.
Valentina
vinha cometendo bullying com diversos colegas da classe mais nova. Ela roubava
seus lanches, seus brinquedos, os agredia, e até andara acertando alguns deles
com raquetes elétricas, feitas para o extermínio de mosquitos.
Os pais
de Valentina haviam se separado recentemente, explicou o diretor, e, por isso,
ela andava agressiva. Acreditava que, machucando os outros, não se sentiria tão
diferente, tão deixada de lado. Então, ela ficaria em observação, com
acompanhamento especial da pedagoga da escola, afim de ajudá-la a melhor lidar
com as frustrações que a vida a traziam.
Miguel
e Enzo continuaram amedrontados, ainda que sem agressões, por um bom tempo.
Sempre esperando quando a próxima pessoa os faria mal.
As
pessoas tendem a torcer a realidade ao seu redor, de forma que ela se encaixe
melhor no que lhes interessa. Acreditando, às vezes até, que vivem papéis
diferentes dos que realmente vivem em interações sociais. Ao contrário do que
muitos fazem: uma tentativa de machucar, danificar ou denegrir um companheiro,
colega, ou até mesmo um desconhecido, para assim, se sentirem melhores consigo
mesmo. É preciso se afastar, se conhecer, e entender o outro. Assim, aprendemos
a respeitar as pessoas ao nosso redor, e, agir com empatia e amor para com o
próximo.
Nossas dores não nos tornam
piores, mas, também não devem ser origem do sofrimento de outros. É nossa
responsabilidade lidar com o que nos é entregue, com ajuda ou não.
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