Torta de Mirtilo
Barry
Barry não era uma criança medrosa, ele saia para brincar com
os amigos na rua e voltava sozinho da escola. Na verdade, ele nunca havia
parado para pensar nas coisas terríveis que espreitam nas sombras; as criaturas
cujas aparências são medonhas demais até para os adultos.
Isto é, até aquela noite chuvosa e cheia de relâmpagos. Ele
dormia enrolado em sua coberta de dinossauros favorita, com um pé descoberto
para que: “A temperatura do corpo ficasse perfeita” de acordo com ele.
Um trovão explodiu no céu, não muito longe de sua casa –
Krakooou, fez o relâmpago – o estrondo foi tão grande que seu quarto inteiro se
iluminou. Barry acordou, e outras coisas também.
De debaixo da sua cama uma cacofonia de gritos e urros começou.
O que quer que estivesse lá embaixo batia e se sacudia, fazendo com que a cama
de Barry pulasse como um touro em um rodeio.
O garoto se segurou com todas suas forças e fez o que toda
criança faria nessa situação: gritou por socorro dos pais, que dormiam no quarto
ao lado.
Seus pais entraram correndo no quarto. A mãe primeiro,
faltando um pé da pantufa, de camisola e com os cabelos presos em uma espécie
de touca de dormir, e logo depois o pai, que trazia à mão um taco de beisebol
antigo, ele usava apenas sua velha cueca bege.
Barry contou a eles o que acontecera com sua cama. Os dois se
entreolharam, duvidando do garoto. Ele percebeu a desconfiança dos pais, então
insistiu até que fossem obrigados a olhar debaixo de sua cama.
Seu pai se abaixou, se virou e rolou e tudo que trouxe de
volta quando levantou foram pratos com restos de comida que Barry deixava pelo
chão.
Ele sabia que seus pais não acreditaram nele, então quando
eles se foram, Barry não deixou o pé para fora novamente. Desta vez ele se
cobriu por completo e torceu para que os monstros tivessem medo do poderoso
Tiranossauro Rex estampado em sua coberta.
Blue
O mundo tremia, e o pequenino Blue
se segurava em seus pais com todas as suas forças, cada pelo se amarrava com o
deles e o três formavam uma grande bola de pelos azuis.
A última explosão assustara-os tanto
que quase derrubaram sua casa com os pulos que deram. O grandão que mora acima
deles gritou e logo os pais dele apareceram. Um deles trazia uma arma terrível.
Blue tinha mais medo deles do que
das explosões lá de fora, e agora um deles havia se abaixado e entrado dentro
da casa deles.
Seu pai, rolou por cima dele e de sua mãe escondendo a
família, pedindo que não fizessem barulho. Blue assistiu o grandão maior roubar
a comida de sua família enquanto os ameaçava com sua arma comprida.
Blue não gostava dos grandões. Antes dali viveram em uma casa
que também tinha grandões morando logo acima deles. Mas aquele era mais
terrível ainda, sua família passou por momentos de dor e sofrimento quando ele
jogava pedaços de pano fedorentos na direção dele. Às vezes os pedaços de pano
ficavam lá até que a grandona vinha recolhê-los alguns dias depois.
Então decidiram se mudar, pensaram ter encontrado um bom
lugar, uma casa tranquila e segura com bastante comida para todos os três. E
assim havia sido, até aquela noite em que nenhum dos três conseguiu dormir
mais, pensando quando os grandões voltariam para pegá-los.
Barry
A noite anterior havia assustado
Barry de tal forma que na seguinte ele se recusou a voltar para seu quarto na
hora de dormir. Sua imaginação tomou conta de sua cabeça, e agora ela criava
cenários em que Barry era capturado pelos monstros que viviam debaixo de sua
cama.
Humanoides com chifres e asas,
caudas com espetos na ponta e presas afiadas. Serpentes serpenteantes que
serpenteavam pelo chão. E seu maior medo, monstros dinossauros! Sua paixão
agora fazia com que seus pelos da nuca arrepiassem de medo. Todos os tipos de
monstros poderiam estar, agora mesmo, debaixo de sua cama.
Novamente seus pais não acreditaram
em Barry. O convenceram a ir para o quarto com garoto tremendo e tudo, alegando
que monstros não existiam. Horas se passaram e ele ainda estava sentado e
enrolado em uma coberta de super-heróis – só eles poderiam salvar Barry agora,
caso algum monstro dinossauro saísse lá debaixo –
Ele trouxera salgadinhos e refrigerante para aguentar a noite
barricado em sua coberta.
A chuva da noite anterior não tinha
voltado, e Barry considerava isso uma vitória. Lidar com monstro e com trovões
e tempestades ao mesmo tempo seria demais até para ele.
Ele comia seus salgadinhos direto do
saco, e se controlava para mascar com a boca fechada, ele não queria que os
monstros o ouvissem comendo e pensassem que era um convite para um banquete de
rapazinho.
Um carro buzinou na rua e Barry se
assustou, derrubando da cama o saco de salgadinhos. Ele olhou para o saco no
chão, triste pelos salgadinhos que agora não lhe pertenciam mais. O chão era
parte do domínio dos monstros. As coisas só eram seguras em cima de sua cama.
Refrigerante não é uma boa ideia,
faz você perder o sono. E sem sono, os monstros tomam conta da sua cabeça.
Rodopiam e danças pelos seus pensamentos por horas e horas. O efeito da única
latinha demorou a passar e Barry tremia de medo e cansaço quando o sono
finalmente veio. Até aquela hora Barry não havia recebido visitas.
Blue
O mundo
escureceu, como fazia todos os dias na hora de voltarem para dentro de casa, e
Blue e sua família se apressaram para segurança da deles.
Desta vez o
grandão demorou aparecer, e quando veio, trazia consigo várias coisas
saborosas. Eles só precisavam que ele deixasse algo no chão, enquanto estivesse
escuro Blue e sua família comeriam e se saciariam.
Por sorte,
naquele dia não tinham mais explosões no lado de fora. Apenas uma, um pouco
diferente das da noite anterior, mas tão aterrorizante quanto. Blue segurou um
grito, que ficou preso na ponta de seus pelos. Porém, o grandão pareceu se
assustar, derrubando sua cheirosa comida.
Seu pai se
aproximou com cuidado, rolando na ponta dos pelos azuis. Eles conheciam aquela
comida, era uma das favoritas de Blue, mas não a mais.
Os três
entraram rolando para dentro do pacote quando seu pai o arrastou para dentro de
casa.
Quando
terminaram os três eram bolinhas amarelas, da cor da refeição que acabaram de
fazer.
O grandão
rosnava acima deles. Isso significava que ele agora dormia.
Algum tempo
havia se passado e sua mãe já tinha limpado todos os pelos de Blue, e agora se
limpava com habilidade. Seu pai não era tão hábil, então quando acabaram ele
era o único rajado de azul e amarelo.
Barry riu
alto vendo seu pai rolar para a cor verde, misturando os pelos azuis com os
amarelos.
Distraído
com a brincadeira do pai, Blue colocou sua família toda em perigo. O grandão
ouviu sua risada e se levantou gritando e berrando.
Arrependido,
Blue se escondeu até a escuridão acabar, mesmo após os grandões maiores saírem
de sua casa. Dessa vez quase foram pegos. Ele não cometeria esse erro
novamente.
Barry
Barry chorou e esperneou. Ele não voltaria a dormir em seu
quarto. Aquele era o covil dos monstros agora. Duas noites seguidas eles
ameaçaram Barry com seus rosnados e grunhidos.
Seu pai então deu uma melhor ideia. O quarto era dele e ele
deveria toma-lo de volta dos monstros. Então eles se armaram com sprays
inseticidas, o antigo taco de beisebol do seu pai e até um spray de pimenta que
sua mãe lhe deu.
Aquela seria a noite que tomariam de volta o que é seu, e por
isso, sua mãe prometeu que faria para ele sua comida favorita se ele fosse
corajoso o suficiente para expulsar os monstros.
Então eles o fizeram, ele e seu pai correram pelo quarto,
bradando e escorraçando os terríveis monstros que habitavam ali.
Quando os dois pingavam de suor, caíram ao chão em
gargalhadas. Barry não sentia medo, ele expulsara os monstros de lá. Mas por
precaução, pediu que seu pai passasse a noite lá com ele. Caso eles voltassem
para buscar algo durante a noite.
Blue
Nem nos seus mais horrorosos
pesadelos, aqueles que tiram o caldo de seus pelos, Blue se assustou tanto
quanto quando viu o grandão maior e o grandão menor correndo em sua direção,
com armas em punho e ameaçando acabar com sua raça.
Seu pai sempre o avisou para que
voltasse para casa quando escurecesse lá fora, mas ontem o grandão não voltou
logo que escureceu, então Blue imaginou que hoje teria essa sorte novamente.
Ele estava errado.
Rolando o mais rápido que pôde ele
desviou do primeiro golpe do grandão menor, que atirava uma baforada de veneno
de suas mãos. Ele não estavam tão próximo, mas o veneno era tão forte que fez
todos os pelos de Blue se encolherem.
Ele sufocava com o ar tóxico, e
agora o grandão maior vinha correndo com a arma comprida, ele a balançava com
tamanha fúria que poderia partir Barry com um golpe, não tivesse seu pai pulado
ao seu lado, se agarrado com todos os seus pelos a Blue e pulado para longe o
carregando.
O terror, porém, apenas começara,
sua mãe, que estava dentro de casa, agora estava cercada. Blue tremia. Seu pai
o colocou em um canto, e pulou para dentro de sua casa. Uma bola azul, mas com
alguns traços do amarelo de ontem, saiu carregando outra bola azul, essa, no
entanto, expelia o veneno que acabara de inspirar, lutando para se limpar.
O veneno não era o mesmo, sua mãe
agora tinha o tom de vermelho mais vermelho que ela já vira.
Mais algum tempo de ameaças e os grandões
haviam acabado com a vontade de Blue e sua família de ficarem ali.
Os dois agora rolavam no chão e
emitiam sons abomináveis, demonstrando toda sua selvageria, uma promessa do que
fariam com Blue e sua família, caso os pegassem.
Estava decidido, eles se mudariam na
próxima escuridão.
A Torta
No dia seguinte a mãe de Barry
cumpriu sua promessa e fez sua sobremesa favorita para o jantar.
A melhor torta de mirtilo do mundo.
E, como sempre, ele carregou um gigantesco pedaço consigo para o quarto. Agora
o quarto era um ambiente seguro depois do que ele e seu pai fizeram na noite
anterior.
Barry esqueceu a colher, ele não se
importava de comer com as mãos, mas sua mãe não apreciava esse ato, muito menos
quando na cama. Então eles foi buscar uma.
Era o dia da mudança, Blue uma vez
gostara daquele lugar, mas agora só medo o cercava.
Como se para terminar de assustá-lo,
o grandão que morava acima de sua casa entrou correndo com algo nas mãos. Blue
e sua família se encolheram, todos aterrorizados.
Blue estava amedrontado, mas ele
conhecia aquele cheiro. Não podia ser, mas era. A melhor torta de mirtilo do
mundo! E para melhorar mais ainda a situação, o grandão deixou a torta no chão
e correu para longe.
Muitos pensariam que era uma
armadilha, mas Blue era inocente, ele rolou se aproximando da torta, o cheiro
era incrível, ainda mais quando se tinha mais de mil narizes pelo corpo todo.
Ele se esticou e começou a comer, o gosto era ainda melhor que o cheiro.
Barry voltou com a colher e agora já
estava de volta em sua cama com seu médio pedaço de torta. O pedaço estava
obviamente menor.
Barry era uma criança inteligente,
ele logo percebeu quem havia comido sua torta. Mas isso era uma novidade, ele
não sabia que monstros comiam torta de mirtilo. Fazia sentido, essa era a
melhor torta de mirtilo do mundo, afinal.
Ele não era uma criança egoísta, e
na mesma medida, era curioso. Então se abaixou e colocou de volta o prato com
torta no chã, ele se encolheu na cama e fitou o prato.
Blue não entendeu, o grandão não
comeu o resto da torta, na verdade, o devolveu para o chão. Seria aquele um
presente de despedida? Ele se aproximou e começou a chupar a torta com as
pontas de seus pelos.
Como se sentisse o olhar do outro,
Blue olhou para cima apenas para dar de cara com os imensos olhos do grandão o
fitando. Sua boca estava aberta mostrando presas afiadas.
Barry sabia que existiam monstros,
ele vinha dizendo isso haviam alguns dias. Mas para sua surpresa, o monstro que
o aterrorizava era uma pequena bolinha azul da cor do mirtilo, cheia de pelos
melecados de torta.
Ele levou algum tempo para criar
coragem, o monstro estava paralisado e parecia o encarar.
— Você gosta de torta.
— Eu... você fala!
— Você fala!?
Os
dois se encararam por muito mais tempo, até que Blue cedeu.
— A
torta é muito boa.
— Ela
é sim, minha mãe que faz. — Disse Barry enquanto descia da cama devagar e se
sentava perto de Blue, o prato separando os dois.
—
Você quer o resto?
—
Tudo bem, temos mais lá na cozinha.
— Vocês
guardam comida?
—
Você é engraçado. Qual seu nome?
— Eu
me chamo Blue, e você?
—
Barry.
Os
dois conversaram mais algumas horas, ambos muito interessados no mundo do
outro. Blue descobriu que o garoto tinha medo dele, mas que o imaginava
diferente. E Barry percebeu o quanto fora ruim para Blue e sua família, se
desculpando por aterrorizá-los.
A
mudança agora não parecia mais necessária, porque a que realmente importava já
ocorrera. Os dois mudaram, eles agora sabiam melhor do que fugir de seus medos.
Você deve encará-los, e
entender o que são e de onde vêm, esse é o único meio de enfrentar seus medos.
Comentários
Postar um comentário