Sem dúvidas, eu duvido

O café não era muito longe de onde morava, então David foi caminhando. Ele gostava do clima chuvoso, preferia o frio ao calor. E nada superava uma brisa de final da tarde como aquela.

O lugar não era chique, mas, por ser um primeiro encontro ele se vestiu bem. Uma camisa estampada de manga curta, de marca boa. Calças caquis e um par de tênis bacanas. Gostava daquela combinação. Estava bem arrumado, e confortável ao mesmo tempo.

Não era sua primeira vez em um encontro com alguém que conhecera ‘online’, mas, o nervosismo era inevitável. Não havia como saber quem era a pessoa do outro lado da tela. No entanto, para sua surpresa, a Sofia que entrou pela porta, era a exata mesma Sofia das fotos que haviam trocado. Para ele, aquilo já era um excelente sinal.

— Sofia, — ele chamou — eu sou o David, como vai?

— Oi, David. — Ela se aproximou e o cumprimentou com um aperto de mão firme. — Vou bem, e você? — Perguntou a moça disfarçando a timidez. Ela usava uma blusa e shorts de conjunto preto e branco, e cheirava muito bem.

                — Eu também. Acabei de chegar. Nem tive tempo de ‘tomar umas’ antes de você chegar. — Disse ele em tom de piada. A moça fechou a cara com o comentário.

                — Eu vou beber só um suco, se você não se importar.

                — Eu não me importo. Te acompanho no seu suco. — “Ponto para o David” pensou ele vendo o sorriso no rosto de Sofia.

                — Então, David, você costuma namorar muito pela internet? — Perguntou ela, puxando assunto após um tempo em silêncio.

                — Não. Não muito, só uma outra vez. — Contou ele. — Bom, duas, se você contar um golpe em que caí. — Confessou envergonhado.

                — Golpe? — Indagou ela parecendo interessada.

                — Não é uma história muito boa. Nem muito trágica, na verdade. — Começou ele. — Eu deveria me encontrar com essa menina. Mas, no dia do encontro, o “carro dela estragou”. — Disse ele, pontuando a frase com aspas aéreas.

                — Então ela te pediu dinheiro para o taxi? — Concluiu Sofia.

                — Não... — confessou — me pediu o dinheiro para arrumar o carro. E eu transferi para ele.

                — Ele? Se surpreendeu a moça.

                — Sim. Acontece que era um cara, ele vinha dando golpes na internet há uns meses. Eu fui só mais uma das vítimas dele. — Sofia não conteve o riso, mas foi educada o suficiente para virar o rosto.

                — Me desculpe, eu não queria rir.

                — Tudo bem. Eu rio hoje em dia também. — Contou ele afim de diminuir a tensão entre os dois.

                — Isso vai parecer uma piada, David. Mas, meu carro também está estragado, e eu preciso de ajuda para arrumá-lo. — Disse ela em tom sério.

                — O que? É sério isso? — Se exaltou ele. — Eu acabei de te contar que já caí nesse golpe uma vez. Você acha que sou trouxa ou o que?

                — Cara, eu não te pedi dinheiro. Só te contei que meu carro está estragado. Eu vim de ônibus. Eu não sou uma golpista.

                — É o que uma golpista diria, não é?

                — Você nem me conhece, garoto. Como sai acusando as pessoas assim? — Disse ela irritada.

                — O Rafael te mandou aqui? Aquele gordo desgraçado pensa que pode roubar mais dinheiro de mim? — Ele se levantou, pronto para ir embora.

                — Você está fazendo papel de trouxa, sim. Estão todos te olhando. — Disse ela com raiva. — Eu não preciso me explicar para você. Mas, ainda assim, eu vou: não sou golpista, e nem muito menos quero continuar esse encontro. Espero que você tenha mais sorte com as moças que encontra fora da internet. Mas, a julgar pelas suas atitudes, o computador não é seu problema. — Sofia pegou seu casaco e bolsa, e saiu do café.

                David ficou sentado em sua mesa, sozinho, pensando no que havia acontecido. Chegou à conclusão que se livrara de outra golpista, e, satisfeito com sua perspicácia, decidiu voltar para casa.

                Como ainda era cedo, decidiu comprar um pastel de um ambulante, e por lá, observando o movimento da rua. Até que algo pegou sua atenção: uma senhora, baixinha e arredondada, daquelas que se tem vontade de abraçar, o encarava do outro lado da rua.

                Ele não era de ter medo das coisas, mas, aquela senhorinha fofinha o afetou mais do que ele gostaria de admitir. E ela não parava de encará-lo. Ele terminou seu pastel em duas bocadas, e saiu de lá o mais rápido que pôde.

                Quando achou que estava fora do campo de visão da senhorinha, disparou a correr. Queria chegar em casa o quanto antes.

                O péssimo encontro já não passava mais por sua cabeça. Esta, era dominada completamente pela fofa e aterrorizante senhora aleatória.

                de sacanagem, né, David? — Começou ele conversando sozinho. — Com medo de uma senhorinha daquelas? — E, ao concluir a pergunta, David sentiu seu corpo se arrepiar com uma sensação terrível. Uma sensação que ele nunca havia sentido, mas que, com certeza, não seria a última vez que sentiria.

                Para se distrair, resolveu passear por suas redes sociais. Mas, assim que pegou seu telefone, uma sequência de mensagens piorou ainda mais sua noite.

“David”

“David”

“David!!”

“David, eu preciso falar com você, retorne assim que puder! ”

“David, que saco. Isso não é um golpe. Eu preciso falar com você urgente! ”

                — Maldita Sofia. Acha que vai arrancar dinheiro de mim assim tão fácil? — Zombou ele, mordendo os lábios de curiosidade. — Ah, que se dane. Se ela pedir dinheiro, é só eu não dar. — Disse enquanto ligava para a moça que acabara de enxotar.

                — Meu Deus, David. Você está bem? — Perguntou Sofia assim que atendeu o telefone.

                — “Oi” para você também. — Disse ele irritado. — O que era tão urgente assim? Pensei que tinha desistido... de mim – “do meu dinheiro”, pensou ele.

                — Eu desisti. Mas tive uma sensação ruim quando cheguei em casa. Pareceu que você estava sendo perseguido por alguém.

                — Como assim? — Perguntou David sem transparecer seu choque.

                — Olha, minha avó é médium. Ela sempre sentiu as coisas. Então, não duvido quando tenho algum tipo de sensação. E essa foi bem nítida. — Explicou ela. — De qualquer forma, só queria ter certeza que estava bem. Desculpa se te assustei. Passar bem.

                — Sofia, espera. — Chamou ele, percebendo que a moça desligaria o telefone.

                — O que é?

                — Me desculpe pelo jeito que agi hoje. Não fui justo com você.

                — Não. Não foi.

                — É. — Disse ele, dando uma pausa para criar coragem. — O que acha de a gente tentar de novo? Desta vez, sem acusações infundadas?

                — Talvez. — Respondeu ela depois de uma longa pausa. — No mesmo horário amanhã, eu te mando a localização, pode ser?

                — Pode. — Seu coração acelerado de empolgação.

                — Até amanhã então.

                — Até.

                Um turbilhão de emoções passava por sua cabeça. Desde o primeiro golpe que sofre, à possibilidade de um segundo, e uma aterrorizante senhora na rua, até uma moça que havia sentido a presença da velha, de alguma forma, e se preocupara com ele. Talvez houvesse alguma chance ali.

                David, abalado com a conversa paranormal, temeu por uma noite mal dormida. Mas, se o que Sofia havia contado era realmente verdade, de nada o afetou. E a manhã seguinte chegou trazendo o sol e o calor costumeiros, que tanto o irritavam.

                O trabalho em home office tinha suas vantagens. Como, por exemplo: evitar que ele fosse morto por velhinhas assustadoras a caminho do escritório. Mas, também trazia desvantagens para pessoas ansiosas. Ficar o dia todo trancado em um apartamento, sabendo que em poucas horas estaria em um encontro romântico, era terrível.

                Quando o final de tarde se aproximava, Sofia finalmente deu notícias. Uma mensagem carinhosa seguida da localização de um bar que ele não conhecia.

                David não se demorou demais na arrumação. Escolheu uma camisa parecida com a que usara no dia anterior. Diferente só o tanto suficiente para que Sofia não estranhasse. E saiu em busca do primeiro taxi que avistasse.

                Sofia já esperava por ele no bar. Estava ansiosa, era visível.

                — Você está linda. — Disse ele depois de se cumprimentarem.

                — Obrigada. — Agradeceu ela. — Você também.

                — Então, — começou ele — quer dizer que sua avó era médium?

                — Ela ainda é. — Corrigiu Sofia.

                — Eu pensei que ela não fosse mais viva.

                — O que? A Vovó Elzira? — Disse ela achando graça da possibilidade. — Aquela lá é mais sadia que muita moça jovem. Difícil é vê-la parada dentro de casa. — Contou ela.

                David escolheu omitir o fato de que havia sido perseguido por uma senhorinha.

                — Olha ela aqui, ajudando a comunidade dela. — Disse Sofia orgulhosa, mostrando a foto de uma senhora rechonchuda ensinando uma criança a escrever. David não podia se temer mais pela criança. Não quando esta estava sendo ensinada pela mesma velha que o havia perseguido.

                Aquela senhora, de traços bondosos, mas com o olhar tão frio que poderia congelar alguém só encarando. Ele não se esqueceria daqueles olhos.

                — Vocês estão brincando com a minha cara, não estão? — Perguntou ele, já sentindo a ira subir ao rosto.

                — Do que você está falando?

                — Dessa sua quadrilha. — Explodiu ele. — Dessa maldita quadrilha! Vocês acham que podem me enganar assim? Eu vi a sua avó ontem. Eu a vi. Olhei nos olhos dela.

                — Como assim você viu a minha avó?

                — Ela era a pessoa que me seguiu ontem. Ela era a pessoa que queria me matar. A pessoa que você se fez de preocupada, fingindo ter tido uma visão com a velha. Era tudo mais uma armação!

                — Eu não acredito que nós vamos passar por isso de novo. Você...

                — Não. Nada de “você”. Hoje quem vai sair sou eu. Eu não aceito ser vítima outra vez. Espero nunca mais vê-la. Nem você, e nem à sua abominável avó. — Gritou ele saindo do bar, sentindo todas as cabeças se virarem para ele.

                — Merda de golpistas. — Esbravejou sozinho, chutando uma sacola ao chão. — Acham que podem me fazer de besta quantas vezes?

                — Senhor David. — Uma voz fraca o chamou.

                — O que você quer? — Gritou ele, antes mesmo de se virar para ver quem o chamara. Ao virar deu de cara com aquele rosto redondo, de sorriso doce mas olhar tão frio. — É melhor a senhora se afastar. — Ameaçou ele, colocando uma das mãos para dentro da roupa, em uma intimidação vazia.

                — Eu não estou aqui para machucá-lo. — Começou ela. — Você é amigo da minha neta. É amigo que ela ainda não tem, mas é dela, é sim... eu vim te avisar. — Continuou depois de uma pausa. — Vim te avisar para tomar cuidado.

                — Deixa eu adivinhar: tem alguém querendo me matar? — Disse ele com rispidez.

                — Tem, e não tem.

                — A senhora andou bebendo?

                — Ele está preso. Mas vai sair. — Continuou ela sem se importar com o comentário do rapaz. — Essa justiça que deram para ele, é a justiça que falha. E, quando falhar, ele vem te procurar. Ah, isso ele vem.

                — De quem a senhora está falando? — Perguntou ele preocupado.

                — Aquele quem você acreditava ser outra pessoa. Aquele, que te marca ainda hoje.

                — Olha, eu não estou com paciência para jogos. — Cortou ele, sabendo onde a senhora chegaria. — Sei muito bem que estão juntos nessa parada.

                — Não. Juntos não. — Explicou ela com paciência. — Sofia nem sabe que estou na cidade. Vim para ajudar, e já volto hoje mesmo. Meu papel aqui já está feito. — Terminou ela se despedindo com um meneio da cabeça e se afastando.

                David ficou parado na rua, perdido em pensamentos, até que finalmente resolveu descartar a possibilidade de a velha estar falando a verdade. Não era assim que as coisas funcionavam. Ele sabia muito bem, pensou. É mais um golpe, não se pode confiar em pessoas na internet. Ainda mais nas que se dizem médiuns.

                — Pelo menos dessa vez eu não mandei nenhum dinheiro para esses pilantras.

                Passara o dia inteiro dentro de seu apartamento, mas, depois dos últimos dias, estava pronto para passar pelo menos uma semana nele. Sairia só para ir ao mercado na esquina. E assim se passaram mais dois dias, até que seus estoques começaram a faltar.

                — Eu deveria ter feito as compras antes de me isolar, pelo menos. — Disse ele, frustrado consigo mesmo, enquanto saia para reabastecer sua cozinha em uma tarde.

                Suas compras foram específicas. Ele era especialista em evitar coisas que perdiam, então comprou tudo congelado que encontrou. Perfeito para um isolamento social, pensou.

                — Eu deixei a porta aberta? — Ele se questionou, quando voltou ao apartamento, encontrando sua porta semiaberta. — Eu realmente preciso prestar mais atenção nas coisas.

                — Sim, você precisa. — Respondeu uma voz grave, de dentro do apartamento, assim que ele fechou a porta.

                Sua reação imediata foi de tentar abrir a porta novamente, mas as mãos estavam carregadas de sacolas, e ele se atrapalhou, derrubando pizzas e lasanhas congeladas, espalhando seu estoque de comida pelo chão.

                — Fica quietinho aí, seu idiota. — Ameaçou a voz. David se virou lentamente, apenas para se deparar com o golpista Rafael apontando uma arma de cano curto para ele.

                — Você. — Ele confirmou. — Eu sabia que estava trabalhando com a velha?

                — Que velha? — Indagou Rafael sem paciência. — Não tem velha nenhuma. Eu vim cobrar você por ter me denunciado. Eu fiquei 6 meses preso, e por culpa sua! — Gritou ele brandindo o revólver.

                — Culpa minha? — David estava apavorado, mas não podia acreditar na cara-de-pau do golpista. — Você me enganou, me roubou, e esperava que eu fizesse o que?

                — Cala a sua boca, playboy. — Ameaçou ele mais uma vez. — Você não tem noção do que eu passei nesses 6 meses. — Disse ele apontando a arma novamente para David. Sua raiva era palpável.

                Rafael estava pronto para atirar, seu dedo no gatilho, quando uma batida soou na porta. Foi a distração que David precisava, ele se jogou para o lado, se escondendo detrás do balcão da cozinha quando uma bala passou zunindo ao seu lado, acertando a parede de revestimento.

                Com o estampido da arma de fogo, a porta foi escancarada, dando entrada a dois homens fardados, de armas em punho. “A polícia, eu estou salvo. ” Pensou David enquanto os homens avançavam sobre Rafael, que, surpreso com a chegada dos policiais, largou sua arma imediatamente.

                — Como vocês descobriram que ele estava aqui? — Perguntou David atônito, enquanto os policiais algemavam o golpista.

                — Eles não descobriram. Eu quem os chamei. — Disse uma voz à porta. Sofia estava parada lá, com ar de alívio.

                — Você... — começou David, mas abaixou o tom assim que percebeu que a moça tinha salvo sua vida. — Muito obrigado. — Agradeceu ele envergonhado.

                — Não há de que. — Respondeu ela. — Eu não sei o motivo, mas vi esse homem apontando a arma para você. Vi em um sonho noite passada. Acordei sabendo o que precisava fazer.

                — Acho que tem dedo da sua avó. — Confessou David com um sorriso sem graça enquanto os policiais conduziam Rafael algemado para fora do apartamento.

                — Você ainda acha que ela estava envolvida com ele? — Perguntou Sofia exaltada.

                — Não, me desculpe. — Disse ele, querendo evitar o mal-entendido. — Eu quero dizer que tem dedo dela no seu sonho. Eu me encontrei com ela de novo há uns dias. No dia do nosso último encontro, na verdade. Ela me avisou que isso aconteceria, eu não acreditei.

                — Então ela veio me avisar quando percebeu que você não acreditou nela? — Questionou Sofia.

                — Talvez. Eu não sei mais o que é verdade e o que não é.

                — Bom, já te disse antes, vi muitas coisas daquela senhora para duvidar das habilidades dela. — Disse Sofia orgulhosa.

                — Você gosta de lasanha de micro-ondas? — Perguntou David pegando uma de suas lasanhas congeladas que se abriu na queda.

                — Eu gosto. — Riu Sofia.

 

 

 

                Não julgue as pessoas baseado em suas relações passadas. Conheça suas histórias, ouça o que elas têm a dizer. Se você acreditar que todos querem o seu mal, você passa a tratar todo mundo como inimigo, e acaba atraindo só o mal para você.

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