Qual o seu segredo?
Meu avô costumava perguntar: “O que você fez de bom no último ano? ” Em todos os Natais, se vestia do ‘Bom Velhinho’ e questionava com ar sábio: “Você foi um bom garoto? ”.
E você, o que você fez de bom? E o que fez de ruim?
Feriu alguém? Mentiu? Negou ajuda a quem precisava? Tirou proveito de uma
situação errada?
Pois deixe eu te contar uma história, e essa é das
boas, daquelas que realmente aconteceu. Esta, por exemplo, se passou em uma cidade
no Sul mais ao Sul que já existiu:
Téo se levantou, esticando a
mão ao celular para desligar o alarme. Eram três e meia da madrugada, horário
em que muitos padeiros acordam para começar o preparo das massas. Este, então,
se aprumou e saiu. Pegou sua velha bicicleta, entortada de muitos acidentes, e
pedalou pela cidade sem movimento.
A rua deserta fazia o cenário
parecer de filme de terror. Mal iluminada pelos postes, e coberta por uma fina
camada de água da chuva que caia. Ele nunca foi muito fã do gênero, mas sabia
que andar sozinho não era bom. Então, se sentiu aliviado quando, virando
algumas esquinas à frente, um companheiro de profissão apareceu também em sua
bicicleta. Os dois moravam perto, e trabalhavam perto. Tinham a mesma faixa
etária, e, nas camisetas, uma saliente barriga entregava o gosto por massas
doces dos dois.
Um
meneio de cabeça e um sorriso, como sempre fizeram, e os dois seguiram seu
caminho compartilhado por alguns minutos. Mais algumas quadras juntos, e o
companheiro se despediu, da mesma forma que se cumprimentaram, e tomou um rumo
diferente. Cada um, pedalando para onde preparavam os pães todos os dias.
Naquela manhã, como em muitas outras, uma bela moça, talvez nos seus vinte e poucos anos, chegou cedo. Uma das primeiras a entrar no estabelecimento. Ele já a conhecia, e àquela hora, tinha acabado de tirar os pães amanteigados, que ela sempre levava, do forno. Então, pegou alguns, colocou-os em uma sacola, e a entregou para a moça. Ela agradeceu, educada como sempre, e se dirigiu ao caixa.
Ivete, no caminho de casa, não
resistindo ao cheiro dos pães amanteigados, abriu a sacola, e deu uma pequena mordida,
saboreando um deles. Não havia comida melhor do que aqueles pães. Chegando de
volta em casa, seu pão agora não passava de migalhas no caminho por qual passou
e em sua blusa. Ela entrou, limpando os cantos da boca, e o que pôde das
roupas, chamando as crianças para comerem antes de irem para a escola.
Cada um de seus filhos, desceu
em um momento. O mais novo, foi o primeiro. Ele se apressou pelas escadas,
quase tropeçando nos cadarços ainda desamarrados, ouvindo o chamado da mãe. Vestia
o uniforme largo e já desbotado que pertenceu ao irmão mais velho. Logo, pegou
um dos pães, e saiu pela porta dos fundos, onde encontraria um colega
acompanhado do pai, sua carona para a escola.
A do meio, de fones de
ouvido, e sem trocar uma palavra com a mãe, usava um conjunto de jaqueta e
calças jeans, pegou mais um dos pães, e se sentou em silêncio junto à porta da
frente, onde esperaria o ônibus escolar passar. Já o mais velho, maior de idade
e na faculdade, desceu sorridente, brincou com a mãe, e se sentou à mesa. Este,
comeu seu pão lá, enquanto falava com seguidores na internet. Cantando. Ele
parecia imitar o irmão mais novo, vestindo uma camiseta larga demais, como se
tivesse pertencido a um irmão ainda maior.
Pete
já estava no segundo pão quando sua namorada buzinou da rua, sua carona para a
faculdade. Estavam atrasados. Ele se despediu com pressa da mãe e correu porta
a fora. Sua namorada dirigia um carro antigo – daqueles quadrados e com grandes
bancos de couro – em tom de verde limão. Ele amava aquele carro, do
aromatizante de limão siciliano à motorista de cabelos cor de areia e sorriso
esperto.
A
faculdade não era perto de sua casa, mas, da forma que a namorada dirigia, o
percurso nunca demorava. Logo estavam sentados em sala de aula rindo um do
outro, enquanto o professor entrava, ainda mais atrasado do que eles.
Sr.
Lopes, como gostava de ser chamado, se aproximou de sua mesa já pedindo que
abrissem seus livros na primeira página do capítulo sobre a consciência, e o
peso que ela soma em nossas atitudes.
Suas
aulas não podiam ser chamadas de monótonas. E, naquele dia, ela não fugiu à
regra. Cada pessoa teve seu tempo para compartilhar um pouco do que carregava
sua consciência, e para analisar como essa carga influenciava suas atitudes.
Era
surpreendente ver como cada um trazia uma bagagem diferente. Alguns se
lembravam de atitudes das quais se arrependiam, outros, de coisas que sofreram
e que marcaram suas vidas. O mais impressionante era como nada daquilo
transparecia. O Sr. Lopes nunca se cansava dessa surpresa. De finalmente ver o
que se passava por de trás da fachada que as pessoas mostravam.
Naquela tarde, porém, nesta Cidade ao Sul, mais ao Sul do que o próprio Sul, teve sua cota de surpresas. Ninguém mais esconderia o que pensa. Todos veriam as pessoas como A Cidade sabia que eram. Suas verdadeiras aparências reveladas. Ela, cercada de misticismos, e carregada com sua própria consciência, desejou que não houvessem mais segredos por lá.
Sr.
Lopes terminava seu almoço quando sentiu que algo o observava. Procurando,
encontrou uma criatura disforme, do tamanho de uma melancia e rosada, o
encarava pacientemente, como se esperasse para ver qual seria sua reação.
A
criatura não se movia, mas seu corpo gelatinoso parecia vibrar com cada
batimento acelerado do professor. Ela não tinha rosto, nem feições, reparou o
educador. Mas, estranhamente, parecia muito interessada nele. Quase um olhar
inocente, maravilhado com a novidade diante de si.
“Quem
é você? ” Ele perguntou. Quase morreu de susto quando a criatura repetiu a
pergunta, com uma voz infantil, mas ao mesmo tempo que a dele. Todos seus
testes apenas comprovaram que a criatura perguntava o mesmo que ele. Algumas
vezes, quando a pergunta foi feita com mais firmeza, sua pele rosada pareceu se
turvar, quase como se estivesse suja, assumindo um tom cinza, apenas para logo
voltar ao tom rosa original.
Porém,
sem que ele percebesse, a criatura não repetia apenas as perguntas que ele
verbalizava. Na verdade, na maioria das vezes que ela o remedava, ele mal havia
concluído a pergunta em sua mente. Era como se aquela pequena bolinha rosada
estivesse conectada diretamente com seus pensamentos, quase como uma extensão
deles. Ou, até mesmo uma representação física deles.
O
professor se perdeu no tempo, admirando a magnífica companhia misteriosa. Mas,
quando gritos exaltados soaram dos corredores, ele despertou e se levantou para
descobrir o motivo. Sua pequena esfera gelatinosa se moveu pela primeira vez.
Saltitando e rolando atrás dele, o seguindo com destreza surpreendente. A cada
momento ele se tornava mais apegado à nova amiga.
Ao
abrir a porta de sua sala, no entanto, o caos do corredor o acertou com um
baque forte. Dois estudantes rolavam pelo chão, trocando socos. Mas a atenção
do professor foi puxada para o horror que assistia à briga. Duas massas
disformes, mas, tão diferentes da sua que ele podia jurar que não tinham
relação qualquer. Eram grandes, uma muito maior que a outra, mas as duas
igualmente escuras, sujas. A maior exalava um odor de decomposição, enquanto a
menor parecia querer esconder sua forma, tentando mudar sua aparência, mas, a
cada contorção soltava grunhidos úmidos e nojentos e voltava à sua forma
redonda sem feições.
Os
alunos não falavam, mas suas massas se insultavam por eles. Atrocidades eram
proferidas um ao outro. Ameaças, lembranças ressentidas, desconfiança e
traição. Sr. Lopes conhecia os dois. Eram amigos, sempre em um trio, os dois
meninos e a namorada de um deles. Mas, as massas sabiam a verdade. Elas eram a
verdade. A verdade por detrás de uma história que só um deles conhecia. Uma
traição.
A
massa maior confessava a traição, e a inveja que tinha da menor. Enquanto a
menor não conseguia decidir se tentava mudar de forma, ou se tornava sua
atenção à raiva que estava da outra.
Cada
murro dos dois afetava suas massas. Elas cresciam, borbulhando com os
sentimentos negativos. A maior agora excretava um muco grosso e fétido.
O professor demorou a se
recompor diante de tamanha atrocidade. Mas, conseguiu chamar a atenção dos
meninos, e separa a briga dos dois. Contudo, isso não pareceu acalmar as
massas. A menor se mexia tanto que parecia quase querer se partir ao meio,
metade de incerteza, e a outra de raiva e frustração da massa que havia sido
sua amiga.
“Pete, você não é essa
pessoa. ” O professor garantiu quando a massa voltou a proferir ofensas à
maior. “E você. Você deveria se envergonhar do que fez, ao invés de querer
culpá-lo. ” Disse a sua própria massa, antes mesmo do educador formular a frase
em sua cabeça. A pequena esfera, antes lisa e rosada, agora tinha ângulos em
sua circunferência, e assumiu tom escuro de terra.
Pete não conseguia
pensar. A descoberta, a confissão do amigo havia revelado nele um ódio
profundo, mas o que mais doía era a perda da confiança. Perda da confiança na
namorada. Perda da confiança no amigo. E perde da confiança em si mesmo. Ele se
levantou com dificuldade. Ignorando os insultos e baixarias que a imensidão
podre proferia contra ele e sua massa.
Ele andou pelos
corredores abarrotados. Em pânico que todos podiam ver a sua massa – agora pequena
e cinzenta – que o seguia tentando imitar seus passos.
Cada pessoa pela qual
passava, no entanto, trazia consigo sua própria massa disforme. Uma coleção
digna de um filme de terror se arrastava pelos corredores, seguindo seus
patronos. Eram de todos os tamanhos, cores, e até odores. Algumas tinha pedaços
de objetos saindo de seus corpos gelatinosos. Havia até uma que parecia ter
forma humana, mas o rosto não passava de uma coisa amassada e cheia de cores.
Não havia uma única
pessoa que continha seus pensamentos. Era como se as massas sentissem a
necessidade de contar tudo que se passava na cabeça de seus mestres. Elas
gritavam obscenidades, segredos, medos e até planos para o futuro. Tudo que se
passava na mente das pessoas, agora era público.
Pete foi seguido pela
massa estranha o trajeto inteiro até sua casa. Ela não perdia oportunidade
nenhuma em avisar aos outros que ele era uma farsa. Que não tinha amigos de
verdade, nem namorada de verdade. Ele não era bonito e nem simpático como se
mostrava. Na verdade, gostava de imaginar coisas ruins para as pessoas, só para
se sentir melhor consigo mesmo.
As pessoas na rua não
tiveram mais sorte com suas massas. Algumas até arremessavam coisas umas nas
outras. Um motorista estava sentado no banco do passageiro do seu carro,
enquanto sua massa – vermelha e pingando de raiva – conduzia seu carro, batendo
em todos os outros carros na rua. Ele foi a primeira pessoa que Pete viu se
entregar à sua massa, agia como se ele próprio fosse o coadjuvante daquele
recente par de vida que tinha.
A caminhada para casa se
estendeu como uma maratona. Brigas aconteciam por todos os lugares que passava.
Pessoas machucadas, chorando, berrando e tentando fugir de suas massas não eram
mais novidade. Agora, o que mais chamava sua atenção, era o fato de que mais e
mais pareciam seguir suas massas, ao invés do contrário.
Pessoas que viveram tanto
tempo fingir ser quem não eram, que, agora que não tinham mais como esconder
quem eram, se escondiam por trás das ações das abominações que agiam exatamente
como sempre quiseram agir.
Pete esperava encontrar
sua casa vazia, mas, ao abrir a porta, se deparou com a maior das massas que
viu. Era de um azul opaco e não tinha cheiro ruim, na verdade, tinha cheiro de
bolo de chocolate com cobertura de leite ninho. Ou de salgados; pizza;
sanduíche; hambúrguer; ou sorvete. A massa não tinha controle do cheiro. Da mesma
forma que não tinha controle da fome. Ele comia tudo que encontrava na cozinha.
Até mesmo as plantas de decoração. Esticava pseudópodes que se agarravam a tudo
e arrastavam de volta para o corpo principal.
Cada vez que trazia algo
para dentro do corpo, aumentava um pouco de tamanho. Sua redondice ocupava toda a entrada, esfregando o topo do teto de
gesso. Ele não havia visto sua mãe ainda, mas sabia muito bem a quem pertencia
aquela imensidão. De canto de olho, viu a mulher gordinha se espremer no canto
da sala, com vergonha do tamanho de sua parceira.
“Eu queria o segundo pão.
” Disse a gigante massa, com uma voz lamuriosa, olhando diretamente para a
massa insegura que tentava ainda disfarçar sua forma oval.
Ivete não queria passar
por isso. Mas ela sentia fome. E, toda vez que sua “amiga” comia, sua fome
aumentava. Ela não tinha escolha, ela precisava comer. E a massa azulada sabia
disso. Sabia tanto que começou a se espremer pela porta da casa, empurrando o
filho e sua personalidade para longe do seu caminho. Ela se forçou até
conseguir passar todo seu volume pela porta. Se arrastando, esticando braços
gelatinosos para tudo que conseguia alcançar. Não havia outro jeito, Ivete
seguiu sua fome para a rua.
As massas agora assumiam
a maior parte das ações de seus formadores. Um monte preto, quadrado e com
pontas perfurantes ameaçava um homem e sua massa amarronzada, enquanto um
policial observava intrigado da calçada.
Outra chorava tanto que
diminuía em ritmo acelerado. Seu gerador estava recostado em uma parede,
parecia ter chorado até não conseguir mais. E agora apenas observava sua massa
se despedaçar em tristeza.
Quanto mais as pessoas se
entregavam à suas crias, mais elas assumiam o controle. Ivete sabia disso, mas
não tinha outra forma. Sua massa agora tinha vários metros de altura, e rolava
com ímpeto, com um destino que Ivete conhecia.
Quando virou a esquina de
sua padaria sua massa já se agigantava sobre a entrada do comércio, membros
frenéticos puxando tudo que conseguiam dos balcões. Quebravam vidros e
entortavam metais. O lugar estava vazio, apenas um homem observava tudo do
fundo, sem surpresa no olhar. Era um homem lindo, jovem e musculoso. Tinha
cabelos castanhos cacheados, e não se movia para impedir e nem sair do rumo da
massa azulada.
Ivete conhecia aquele
rosto, mas não conseguia se lembrar onde havia visto aquele homem. Ela se
lembraria. Foi quando ele se moveu, que ela entendeu o que era. O padeiro
rechonchudo se escondia por detrás da bela imagem que sua massa representava. Era
uma versão mais jovem de si. Mais jovem, e talvez mais bonita do que ele jamais
foi.
A massa se movia com
leveza impossível, seu corpo musculoso era flexível, e ela passou sem
dificuldade pelo volume da massa azul.
Téo tentou também. Mas a
idade havia tirado dele aquela agilidade. Ele tentou, por várias vezes tentou,
mas sem sucesso, chamou pela forma esplendida que o observava sem vontade do
lado de fora da padaria. Pediu que o ajudasse, ele era seu criador, afinal.
“Eu... não... preciso de
você. ” Disse a massa, experimentando pela primeira vez um pensamento só seu.
Ela se virou, dando as costas a Téo, que, desesperado, tornou a tentar se
espremer pela massa azul cada vez maior, enquanto observava sua versão dos
sonhos se afastar.
À cada passo, seu corpo
parecia sofrer mais e mais. Aquilo era o que ele sempre quisera. Ser jovem
novamente, ser lindo, forte e cheio de graça. E agora estava abandonando seu
corpo velho para trás. Então, nada parecia fazer mais sentido do que aquilo.
Ele teria abandonado aquele corpo velho também, se pudesse. Aceitando seu
destino, abraçou o membro azul que o arrastava lentamente.
Essa é uma história real.
E aconteceu com uma cidade real. Ela pode parecer estranha. Mas o destino se
cansou de tantas histórias não contadas. De tantas verdades abafadas. E
resolveu mostrar àquelas pessoas o que aconteceria se seus verdadeiros “eus”
fossem visíveis.
Essa é uma história real,
e que pode acontecer em uma outra cidade real. Como estão seus pensamentos?
Como seria sua versão gelatinosa? Você se entregaria às suas falhas? Aos seus
desejos? Talvez não seja tão tarde, talvez você ainda consiga se tornar alguém
melhor. Talvez.
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